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Críticas

Cineplayers

O outro lado do cinema.

7,0
Autor do mais famoso melhor filme de todos os tempos, Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), feito por Orson Welles aos 25 anos de idade, uma outra aura ainda mais perturbadora dali por diante perseguiria a carreira do realizador até o final de sua vida: a de praticamente todos os seus outros filmes serem remontados à sua revelia, ou ainda pior no caso de alguns, deixados inacabados e inéditos. Uma das razões é que o cineasta nunca mais teria a carta branca e os recursos disponíveis em Cidadão Kane, que não deu lucro, gerou problemas na estreia com o poderoso magnata William Randolph Hearst, e certa inveja no métier devido à repercussão crítica e a originalidade por parte de um até então jovem homem de teatro mais conhecido pela radiofonização da invasão marciana em 1938. Existem teorias de o porquê os filmes terminaram remontados ou inacabados, como a que diz que depois do fabuloso êxito artístico de Kane, Welles secretamente temia nunca mais repetir o mesmo nível, tratando de se retirar ao final de suas produções, com as justificativas mais diversas. O que inevitavelmente o levava a perder o controle dessas produções, caindo esse controle nas mãos de terceiros, ou os projetos não encontrando os meios necessários para serem finalizados. Welles se defendia dessas acusações respondendo que invariavelmente precisava trabalhar como ator em filmes de outros diretores para arranjar dinheiro e investir nos seus próprios filmes, e uma análise minuciosa de sua biografia confirma que o realizador pode tido culpa em algumas das vezes que seus filmes lhe foram arrancados das mãos, mas que por outro lado não deixava de ser perseguido por uma má sorte. 

O Outro Lado do Vento não é o seu primeiro filme lançado postumamente. Em 1992, houve com o sugestivamente intitulado Don Quixote de Orson Welles (Don Quijote de Orson Welles, 1992) uma tentativa por parte do cineasta Jesus Franco em montar a partir de fragmentos de uma versão caseira filmada ao longo de muitos anos em cima duma adaptação do romance de Cervantes. O que não foi visto com boa aceitação pelos críticos e fãs de Welles, com Jonathan Rosenbaum acusando o projeto de uma “apropriação indevida”. Pode-se preferir É Tudo Verdade (It’s All True ,1993) pela sua condição de documentário sobre o lendário documentário inacabado, com os fragmentos deslumbrantes em cores que sobraram do projeto de Welles na parte final do filme de Richard Wilson e Bill Krohn. Se com It’s All True (filmado no Brasil em tempos da política de Boa Vizinhança durante a Segunda Guerra) foi que começaram os problemas na filmografia de Welles, O Outro Lado do Vento representa o equivalente na etapa final de sua carreira. Financiado por petrodólares iranianos, mas arquivado durante décadas com os negativos agora recuperados, e a distribuição vendida para a Netflix, O Outro Lado do Vento causa um fascínio pelas impregnantes e por vezes abstratas imagens como que peças restauradas em museu, e filme-irmão de Verdades e Mentiras (F for Fake, 1973), que foi rodado depois mas concluído e lançado na época. 

Um tanto a visão do artista de meia-idade sobre a contracultura e o cinema contemporâneo daquele período, há duas histórias correndo em paralelo, com o personagem do realizador Jake Hannaford, com mais do que tintas autobiográficas por parte de Welles, e encarnado por John Huston, aventureiro, artista e caçador (no filme o personagem é chamado de Hemingway do cinema), mas parecendo pertencer a um outro planeta, não conseguindo finalizar o próprio filme, em meio a uma geração de jovens profissionais como parte de cinemas novos pelo mundo (incluindo a Nova Hollywood), que pareciam admirar sobremaneira um colosso como Welles, mas em meio ao qual o próprio Welles (e Hannaford) se sente deslocado e ele próprio uma peça de museu. Em volta de amigos, profissionais e jornalistas, Hannaford projeta as imagens que já filmou de seu trabalho mais recente, na esperança de que sejam obtidas as condições para que possa finalizá-lo (algo que Welles também faria pessoalmente com cenas de O Outro Lado do Vento).

E o filme dentro do filme, as cenas concebidas por Hannaford, um filme de vanguarda que parece dialogar, mas que também satiriza a vanguarda daqueles cinemas novos, em torno de uma mulher (a croata Oja Kodar, ultima esposa de Welles) perseguida à distância por um rapaz (Bob Random), como se tudo pudesse ser reduzido ao axioma “homem ama garota”. As sequências são de compreensão difícil, mas entorpecedoras e muitas vezes maravilhosas, pequenas obras-primas isoladas dentro dessa versão reconstruída, o que inclui um erotismo ausente no restante da filmografia de Welles, e que beira o pornográfico, como a cena de sexo de Kodar com o amante, enquanto o marido segue dirigindo em meio a chuva, ou o falo gigantesco perto do final. Brincadeiras e malicias sexuais típicas da época, mas aqui exacerbada por Welles, em meio ao preto e branco e o colorido, tipos diversos de películas, planos fixos e móveis, zoons excessivos, câmera na mão, luz estourada, num todo cujas fronteiras estéticas senão a própria temática de O Outro Lado do Vento se aproximando das de filmes-ensaios de alguns outros mestres do cinema moderno, como Monte Hellmann [Caminho Para o Nada (Road to Nowhere, 2010)] e Rogério Sganzerla [O Signo do Caos (idem, 2003)], para citarmos apenas duas realizações dos últimos quinze anos. É como se Welles, sabendo que era admirado por toda aquela turma, também se assumisse o pai renegado e desgarrado de todos eles, por ter praticamente inaugurado o cinema moderno com décadas de antecipação em Cidadão Kane. Os mais jovens também passariam no futuro cada um pelo seu calvário particular.  

O Outro Lado do Vento é apreciável pelo que se pode vislumbrar o que dele seria caso tivesse sido lançado nos anos setenta. Praticando a experiência de rever F for Fake no dia seguinte ao de O Outro Lado do Vento, percebe-se como este último, com uma digitalização no mínimo discutível e montagem anômala, termina por parecer um produto chapado e afetado que foge à linha do antigo cineasta. E uma fruição que não é bem a de Welles, evoluindo de um modo como não parecem evoluir os seus filmes (que possuíam uma fruição particularíssima), e incluindo momentos que sugerem que seriam deixados de lado na sala de edição pelo diretor caso ele tivesse finalizado o seu projeto, por mais que se tenha agora consultados memorandos, anotações e diretrizes. Ainda que exista um público favorável a alguns trabalhos do currículo do montador Bob Muramawski (de Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008) e da franquia Homem-Aranha (Spider-Man, 2002), é forçoso reconhecer que algo não encaixa ao estilo de Welles. Mesmo o aval de críticos como Rosenbaum, ou de Peter Bogdanovich (ator e produtor no filme), beiram o risco da condescendência. À despeito dessa versão reconstruída, The Other Side of the Wind permanecerá para sempre um filme inacabado.  

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