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Críticas

Cineplayers

A crise dos refugiados na Europa sob o olhar inconfundível de Kaurismäki.

8,0
Dotados de uma frieza avassaladora, os filmes de Aki Kaurismäki buscam pela humanidade de seus personagens dentro de um ambiente gélido e opressivo. O plano de fundo possui quase sempre um caráter político, não para admoestar, mas para ressaltar o valor de seus personagens enquanto figuras trágicas inspiradas na realidade. Ele tem feito isso por mais de quarenta anos agora, em uma carreira bastante regular e marcada por estes e outros traços inconfundíveis.

Em O Outro Lado da Esperança, o diretor toca na crise dos refugiados na Europa. Khaled, que foge da Síria ao mesmo tempo em que percorre o leste europeu em busca da irmã desaparecida, tem em seu passado recente trajetórias que se confundem com a crise dos refugiados como um todo. O protagonista, que desenterrou os corpos da família depois de sua casa ser atingida por um míssil, encaixota sua tristeza na carapaça de um homem silencioso e obstinado, como é comum aos heróis mal tratados (pela vida) de Kaurismäki.

Paralelamente ao arco de Khaled, Wikström, um vendedor viajante de terceira idade, separa-se da esposa, vende a preço de banana todas as suas mercadorias, aposta os lucros em uma aflita partida de pôquer e, com o dinheiro da vitória, investe em um maltrapilho restaurante que mais parece um boteco de fim de noite. Wikström, ao contrário de Khaled, não tem (ao menos não nos é mostrado) um passado digno de nota, e talvez resida justamente aí nessa rotina monótona e solitária de um vendedor viajante, o estímulo necessário para mudar completamente sua vida.

Enquanto as duas histórias desenrolam-se paralelamente, o filme adota um tom mais sério, ressaltando a melancolia da situação do despatriado Khaled e o risco do investimento de uma vida de Wikström. Embora os dois sujeitos estejam entregues às suas próprias circunstâncias, reféns de certa forma do poder opressivo de algumas instituições (especialmente no caso de Khaled, com a polícia e o governo), ambos encontram refúgio nas pessoas ao redor para suportar mais um dia. E quando finalmente suas histórias se cruzam, é precisamente essa tendência a confiar nas pessoas mais próximas que criará o laço definitivo entre os dois personagens, perdurando até o fim do filme.

A partir daí, a história que era marcada por um plano de fundo bastante ligado a um contexto político real passa a concentrar-se mais em observar as relações dos personagens na tela enquanto, juntos, buscam domar as ciruncstâncias, cada qual com seu objetivo: Wikström precisa ressussitar seu restaurante e Khaled precisa reencontrar-se com sua irmã.

Focalizo esse caráter das relações entre os personagens do filme por considerar que reside aí sua maior qualidade. Certamente o filme não faz pouco caso da crise dos refugiados (assim como os filmes oitentistas do diretor não faziam pouco caso da desigualdade social na Finlândia). Ela é, afinal, a força invisível da narrativa, esgueirando-se pelas sombras dos quadros a todo instante, e dando as caras em cenas chaves da história, inclusive em um sugestivo e amargo final. Mas acima de tudo, O Outro Lado da Esperança destaca-se pela representação do auxílio e da camaradagem, algo que seu antecessor, O Porto (2011) também fez muito bem.

Naturalmente, por tratar-se de um filme de Kaurismäki, tais acontecimentos não ocorrem dum jeito emocionante, como esse texto parece sugerir. Seus personagens têm como bases uma rigidez emocional marcada e uma franqueza agressiva no discurso. Do suicídio apático em Ariel (1988), dos jantares monótonos em Sombras no Paraíso (1986), passando pelas punhaladas em Um Homem Sem Passado (2002) até chegar aqui, com Wikström divorciando-se da mulher ao simplesmente chegar em casa, colocar a aliança na mesa e sair pela porta sem dizer uma palavra. Ações que revelam as condições das pessoas que o cinema de Kaurismäki pretende retratar: resilientes, duras, que passam por entraves e situações de quase morte sem chorar ou reclamar.

Outra característica fundamental do seu cinema é o humor. O embaraço das vidas marginalizadas retratadas confunde-se diversas vezes com a graça que Kaursimäki consegue extrair dali. Sempre com o alinhamento entre o humor burlesco e uma melancolia devastadora em decorrência do plano social, a história prossegue, dando liberdade para que os personagens tomem rédeas do próprio destino e, por capricho ou saudade, permitam-se caminhar novamente por onde já pisaram. O cinema de Kaurismäki não pretende ser brutalmente deprimente e niilista, mas busca nos pequenos momentos e pequenos gestos (um celular emprestado, uma carona, um favor oferecido) potência suficiente pra fazer a vida valer a pena.

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