8,5
Existe uma diferença primordial entre a ação e a observação? Um corpo no espaço que vigia o outro atua diretamente nele ou não? A arquitetura de muitos filmes de suspense é construída nessa dinâmica de ponto de vista, na qual um elemento do quadro pode trair o conforto de percepção que um plano passa; seria essa dinâmica uma ação observacional do personagem, e por isso também do espectador?
Quem vê os primeiros 20 minutos de O Ornitólogo pode achar que o filme tem esse foco quase procedural na dualidade da observação e do observado, à medida que Fernando, vivido por Paul Hamy, passa seu dia catalogando aves com seu binóculo, e elas devolvem o olhar. O esforço do diretor João Pedro Rodrigues em conceber aquele cotidiano de trabalho, no qual seu personagem é um homem adaptado ao ambiente, cria uma cumplicidade do espectador com o personagem que é crucial para esse diálogo de percepção.
O jogo de perspectiva continua nas soluções visuais que o português usa para ver Fernando, um ser cujas ações têm grandeza maior que o esperado: quando conversa com as chinesas sobre a floresta e elas o elegem um "homem apto a nos ajudar", as sombras são capturadas na pedra como se fossem pinturas rupestres. Essa dimensão primitivista imagética progride junto a trama, surgindo em sombras e cores nas barracas, e é o primeiro sinal evidente de que O Ornitólogo é uma fábula na qual o surgimento do homem se dá pelo confronto com a natureza.
À princípio, a floresta é apresentada como um terreno assimilado, de proporções razoavelmente delimitadas, que o scope do diretor organiza através da profundidade de campo e da relação do pedaço de terra com a água do rio. Não por acaso O Ornitólogo lembra tanto Um Estranho no Lago nessa espacialização inicial; são filmes que jogam com a repetição para ocultar o desconhecido no extracampo, para então os revelar como um elemento perigoso para seus protagonistas. O ceticismo de Fernando é testado quando ele perde um pássaro de vista e cai rio adentro desse extracampo antes desconhecido - um rito de passagem eficaz para a mudança radical que o filme faz.
Querer dominar o natural - e por dominar a observação entra como ação, uma vez que é também uma forma de apreensão - é uma frustração anunciada ao longo do filme, e a comparação de Fernando com santo Antônio ao longo da narrativa dá sinais da jornada que o personagem segue. Nesses momentos, a troca súbita de Paul Hamy com João Pedro Rodrigues no personagem evidencia a visão distinta que aqueles seres naturais e mágicos têm do homem terreno pro homem mito (e não escapam didatismos deslocados, como a queima das impressões digitais como meio de despersonalização; nada que atrapalhe, porém). Essa dimensão barroca do homem com a narrativa que a Bíblia lhe reserva o aproxima muito de O Cântico das Criaturas, curta de Miguel Gomes que conta a trajetória de São Francisco de Assis dessa mesma maneira que tenta conciliar a historia do santo com os rastros que suas pregações deixaram no mundo. O medo pelo plano maior é reflexo direto do extracampo que o início do filme já construía.
E nessa busca pela assimilação do desconhecido, o personagem sofre ao se deparar com a imprevisibilidade que não esperava da natureza. A perdição é sobretudo uma questão básica de comunicação: as viajantes falam mandarim, os ritualistas falam mirandês, o pastor do gado é surdo-mudo, as amazonas falam latim. A única forma de se comunicar sem a hostilidade do caos é ser absorvido pelo extracampo, pelo misticismo, que pode ser bíblico mas não é diferente de fábula alguma. Mesmo Jesus no filme é um mistério romântico extremamente interessado na observação, no estudo de como chegar ao outro.
Não é como se O Ornitólogo fosse, porém, uma releitura de Coração nas Trevas como Aguirre; os dilemas enfrentados sobre o misticismo daquele lugar e o peso histórico do conjunto de memórias ocultas que ele guarda aproximam o filme do cinema de Apichatpong, colocando elementos folclóricos tradicionais com mitos de diversas outras culturas (nesse caso, a Bíblia) para testar a fé de quem não adere ao plano simbólico de um ambiente tido como inexplorado. As consequências das ações de Fernando são medidas a cada nova dissonância com o ambiente, a cada vez que a natureza se impõe como destino implacável. É como se as memórias místicas de fato encarnassem nos vivos.
A comunhão social pode então ser consumada quando se entende o quanto um lugar age sobre um alguém, ainda mais em um espaço revestido por tradições que se esgotam e se reinventam, como culturas que se aproximam para permanecer relevantes e agentes nos que ousam passá-las para o próximo.
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