8,5
Se se que quer mapear o epicentro da produção cinematográfica contemporânea que provoca, alimenta, desestabiliza, ''faz a linguagem do cinema gaguejar'', como disse certo pensador sobre Godard, é preciso ir a Portugal – e lá mesmo ficar, muito provavelmente, por alguns duradouros anos. É Portugal que tem esticado as possibilidades do cinema ao limite, a uma quase morte, uma beira intransponível, ponto a partir do qual não se parece poder ser mais inventivo; mas só para recuar logo após, recolocá-lo distante da borda e reiterar o infinito do concebível. Os borrões que a aproximação entre o ficcional e o documental abarcam, o oceano de adaptações da própria literatura, das mais firmes às mais livres, as respostas que dá à própria arte através do uso da história e de outros meios, a absorção dos contos orais popularescos e das grandes narrativas, a presença da iconografia mítico-religiosa, para não falar de outras dezenas de contribuições. Haveria um esqueleto comum a tais bombeamentos? A narrativa como figura mais que cara? Não sei. E, de certo modo, é preferível que continuem a lançar perguntas.
Na breve introdução ao livro que deu origem à Mulher da Areia (Suna no onna, 1964), o monstro da Nouvelle Vague japonesa, Kobo Abe fala do desaparecimento do entomologista pelas vias da excentricidade. Àquele homem sumido que havia dedicado a vida ao estudo minucioso de insetos, considerou-se certo homossexualismo, uma marginalidade sócio-sexual típica do desajuste e que os minúsculos animais teriam afagado com conforto. A preferência pelo natural e suas inumanidades simbolizaria o desvio. Se há entre aquele homem e o ornitólogo de João Pedro Rodrigues qualquer semelhança não se pode afirmar, embora ambos sejam impulsionados para fora dos percursos da racionalidade e cautela que o ofício lhes empresta. Fernando observa as aves com seus binóculos e o apuro daquele que está sempre à espreita. As listras na plumagem, pequenos hábitos, locais de desova: é o detalhe que compõe sua tarefa de catalogar e registrar o mundo que não é o seu.
E o que a natureza devolve ao ornitólogo também não segue suas leis. Frustração do excêntrico solitário. Não lhe instiga viver lá, tampouco pode coordenar o que acontece ali. Os animais parecem esquadrinhá-lo com o mesmo efeito. Algumas primeiras visões periféricas do pássaro que o faz quase se afogar e já se instaura o primeiro signo dessa devolução. Borrada nas margens, o olhar da ave contudo também não o vê como Fernando. Há, na distância do sobrevoo, um outro rosto – a ser confirmado depois. Capturado pelas chinesas pela heresia de não seguir o caminho do sagrado que as duas ''boas samaritanas'' o oferecem, amarram-lhe como o São Sebastião místico, este sacrificado também por um desvio, e que a cultura apropriou como ícone da sensibilidade homossexual. Até aí Rodrigues havia operado três mudanças de tom: da contemplação naturalista à comédia absurda das fanáticas chinesas turistas, como se a História regurgitasse as peregrinações portuguesas ao continente asiático, apercebemo-nos logo de certa tensão, porque a fuga do devir-santo é também o encontro com o paganismo da floresta.
Da sua primeira hora à segunda, a narrativa despenca numa dobradura mítica, uma jornada de despessoalização rumo ao sagrado que parece jorrar um novo filme. Fernando pede os remédios (o corpo começa a falecer), não encontra mais seu mapa e a tecnologia do celular e do GPS o abandonam (não pode mais se encontrar); mas também tem os olhos arrancados e a impressão do polegar queimada da carteira de identidade. Deixou de ser alguém, e logo ao descobri-lo – o que é diferente de percebê-lo – comete dois gestos de profanação carnal com Jesus. Mas não há nada gritando que esse então-ninguém está em vias de experiência sagrada. Não interessa a Rodrigues a lógica do sentido. O que este texto faz é a pobre tarefa de tentar traduzir imagens que se dão pela presença. O continuum da obra, que é da ordem da sensação, encadeia-se sem considerar que nós, agora, entendamos que aquilo se trata de uma transmutação de Fernando pelo caminho de Santo Antônio. Até lá, ou até agora, resta a receptividade do cinema como veículo para a passagem da condição homem-santo. O momento não pode fazer sentido, mesmo que o espectador devolva à tela a sabedoria da tradição religiosa. O intervalo da interpretação torna-se interdito.
Que (agora) Antônio pregue aos peixes e opere o milagre da cura para Tomé, o discípulo tido como incrédulo, é magia que o simbolismo das camadas oferta. Encontro digno daquele entre o tigre e seu amante em Mal dos Trópicos (Sud Pralad, 2004), como se houvesse algo por trás da tela fabricando sortilégios. E é também por isso que o vocabulário religioso é tão caro ao cinema. A cinefilia sabe muito bem disso. Manifestos ali estão todos esses círculos que o ícone da imagem oculta e revela ao mesmo tempo. Mas revela pelos meios indizíveis da força ancestral. Cineasta como anunciador, mestre de marionetes que só estão ao seu alcance pelo infinitesimal e sempre fugidio instante da criação. Ainda assim, se perguntarem como Rodrigues consegue, em meio a toda imposição do silêncio dessa imagem carregada, articular a comicidade portuguesa típica, aquela que surge do nada, que consegue unir elementos antagônicos, incrivelmente díspares e prosaicos, partindo de um gesto ao qual não se atribuiria normalmente malícia alguma, para isto também não haverá respostas.
Visto no IX Janela Internacional de Cinema do Recife
Bela crítica,realmente ótima,parabéns.