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Críticas

Cineplayers

Mecanismo imprevisível, a mente humana se manifesta como protetora contra a realidade e vilã que orienta rumo à decadência.

8,5

Há um limite tênue que separa vida e morte. Há uma barreira frágil entre o delírio e a realidade. Todas as noites travamos contato com o estranho dentro de nós, que se revela e se esconde. Suas principais características são a camuflagem e o poder de nos enganar. 

Trevor Reznick (Christian Bale) é um homem perdido entre fronteiras. Uma vítima do destino e de si mesmo, um ser exageradamente magro que trabalha como operador de máquinas e não dorme há um ano. Frequentemente se encontra com Stevie (Jennifer Jason Leigh), uma garota de programa, mora sozinho em um apartamento, se esquece de pagar as contas (apesar de escrever bilhetes para si mesmo sobre o que deveria lembrar), frequenta a lanchonete de um aeroporto, onde conversa com a garçonete Marie (Aitama Sánchez-Gijón), e parece ter uma estranha mania de limpeza, pois está sempre lavando as mãos, quando não esfregando o chão com alvejante em hora avançada da noite. 

Reznick é um mistério, pois assim como o próprio personagem, o espectador não entende o que há de errado em sua vida. Mas a narrativa prende a atenção. Os objetos, aparentemente apenas detalhes do cenário, assumem fundamental importância na construção dos sentidos. Lanterna, isqueiro do carro, relógio sempre marcando a mesma hora, livro de Dostoiévski, toca-discos de vinil, cristaleira, tudo é simbólico e peça de um quebra-cabeça que se revela muito lentamente. Somente aos poucos, em meio à estranheza do que nos é mostrado, percebemos que nem tudo que vemos constitui realidade objetiva. Parte da existência de Reznick é vivida em um mundo paralelo, apenas dele.

A concepção do personagem e da própria história surgiu da imaginação do roteirista Scott Kosar, que se declara profundamente influenciado pela obra de Dostoiévski e de Kafka. Estes dois gigantes da literatura universal são ótimas referências quando se deseja explorar as misérias humanas e seus absurdos, além de aprofundar as características psicológicas de personagens. Inegável a aproximação também com a obra de Edgar Allan Poe que soube, como ninguém, explorar os estados da mente, o terror psicológico e o sentimento de culpa (vide William Wilson, A Queda do Solar Usher, Ligéia, O Retrato Oval, por exemplo).

Em sua condição insone, o protagonista passa a ser vítima de delírios. Ele não distingue entre o que é realidade e o que é produzido por sua mente exausta. Assim, acaba provocando um acidente grave. A partir daí o espectador fica em posição privilegiada, pois tanto compreende o ponto de vista daqueles que notam a estranheza do comportamento de Reznick (seus colegas de trabalho), quanto a perspectiva do próprio personagens que se torna paranóico, sentindo-se vítima de um complô.  Inicialmente não se nota claramente a divisão entre o que é delírio e o que não é, entre o que é passado e o que é presente. A narrativa acaba por não ser muito diferente da utilizada por Anthony Hopkins no recente Um Sonho Dentro de Um Sonho (2007), porém mais radical. A confusão momentânea é parte de um jogo narrativo que faz compreender melhor a própria situação mental do personagem.

O Operário mergulha fundo nas possibilidades do inconsciente e tem nesta viagem sua razão de existir. Ivan (John Sharian) surge como o ente que conecta Reznick diretamente ao seu subconsciente. O ser que se torna a  causa maior de sua paranóia é produto de sua própria imaginação doentia, o que se percebe pelos diálogos. Reznick pergunta: “Cadê o Reynolds?”. E Ivan responde: “Os federais o levaram. Ele foi preso”. Também os diálogos com Marie estão cheio de pistas embaralhadas (“Quando se trabalha num cemitério, como eu já trabalhei...”). Tal como acontece em nossos sonhos, cenas e pensamentos cotidianos se misturam criando situações aparentemente sem sentido.

O passeio pelo parque de diversões é o divisor de águas que desperta o espectador, até então mero observador a reconhecer o território. Naquela trajetória medonha, seguida no trem fantasma, cada elemento é uma representação manifesta do inconsciente de Reznick. Não é um mero brinquedo para entreter crianças, como a criança que o acompanha não é apenas um menino. Neste ponto se expressa a maior vontade do protagonista: o final assustador é reversível (como não acontece com a tragédia real que abala sua vida) e tudo acaba sem maiores consequências.

Reznick tem um presente e um passado que nos é sugerido. A falta da mãe já falecida é determinante em sua desorientação presente. Suas lembranças relacionadas a ela sugerem a perda de um porto seguro ao qual todos nos agarramos. Marie surge como a outra mãe que representa conforto emocional e redenção para sua culpa, a companhia pela qual não precisa pagar (ele deixa gorjetas para Marie como deixa pagamento para Stevie). Aqueles que o cercam no cotidiano o lançam na solidão à medida que dele se distanciam e o condenam. Sua única companheira é Stevie. Ela cuida dele, lhe dá banho quando está machucado. Ambos fazem planos para o futuro e juntos os vêem ruir em um dos surtos de paranóia. No processo que culmina com a recuperação de sua memória, Reznick se reconhece, se reencontra. Sua salvação está na escolha que o liberta e o acolhe em um cenário de paz onde pode, finalmente, repousar.

Filmado na cidade de Barcelona – embora o diretor, Brad Anderson, tenha se esforçado em fazer com que a história pareça se passar nos Estados Unidos, como previsto no roteiro – , O Operário é tecnicamente bem cuidado. Tem boa fotografia de Xavi Giménez e uma iluminação interessante que explora contrastes e contribui bastante para caracterizar os diferentes climas. O tratamento de cores  acaba deixando tudo quase monocromático e dá um ar de sofisticação clean às imagens, algumas realmente inspiradas. 

O diretor se serviu de propriedades do gênero suspense, talvez exagerando nas referências ao mestre máximo Alfred Hitchcock, inclusive quanto à trilha sonora, desenvolvida por Roque Baños sob influência de Bernard Herrmann. A cena da banheira é muito bem resolvida e uma homenagem óbvia a Psicose (1960). O editor, Luis De La Madrid, conseguiu amarrar tudo em um ritmo adequado, transformando o quebra-cabeça em algo que se desvenda com ansiedade. Considerando que as opções de Anderson foram conscientes e que o resultado alcançado é bom, não há muito o que se questionar. O fato é que se O Operário tivesse uma estética diferente não seria o mesmo filme.

Muito se fala sobre a disposição de Bale em perder cerca de quarenta quilos para interpretar Trevor Reznick, mas isso nem foi o mais determinante para a perfeita representação do personagem. Bale conseguiu fazer de Reznick um tipo extremamente humano que tende a despertar a empatia do público. Se trata de um homem de bom coração, bem educado, companheiro, agradável e até encantador com as mulheres, atencioso com o garoto Nicholas (Mathew Romero), filho de Marie. Sua culpa é causada por um descuido e uma fatalidade, e Bale traduz tudo perfeitamente.

Embora a associação com Clube da Luta (1999) seja inevitável (ambos os filmes tratam de personagens que sofrem de insônia, têm delírios e arruinam a própria vida), as personalidades dos protagonistas são muito diferentes, assim como suas motivações, as soluções narrativas e estéticas adotadas por roteiristas e diretores. Reznick não é um ser oprimido pelo sistema que acaba por implodir, pelo contrário, as referências ao seu passado mostram alguém bem ajustado, com trabalho, amigos, hobbies simples como a pesca, a música, os livros. A tragédia que o envolve poderia atingir qualquer um de nós, seres frágeis que somos diante das coisas da vida e diante de nós mesmos. Sua fuga, antes de ser irresponsável, é reflexo do desnorteamento e fraqueza de um homem diante da tragédia que o choca e que não deixa de consumí-lo, dia após dia, ao longo de um ano inteiro. O Operário é para se descobrir e redescobrir muitas vezes, sempre com consciência de que somos tanto e não somos nada.

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