Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Um suspense e drama psicológico acima da média, bastante cerebral. Não é uma obra-prima, mas vale a recomendação.

7,5

Imagine uma noite sem sono. Todos já passamos por isso, tanto a trabalho quanto a diversão. Agora imagine-se duas, três noites seguidas aceso, uma semana. Insônia, só pode ser insônia. Tente então imaginar passar um mês sem dormir. Parece desesperador, não? Pois então se imagine ficar sem dormir durante... um ano. Inimaginável, certamente. Você ficaria tão cansado que facilmente começaria a deturpar a realidade, e perderia o apetite a um ponto crítico. Adicione a isso um mundo onde todos que você conhece ou com quem já teve algum contato estivessem conspirando contra seu infortúnio, e você não possa confiar em ninguém, nem em sua própria memória. Pronto? Você está começando a ver o mundo pelos olhos de Trevor Reznik.

Trevor é um esquelético operário de uma indústria, que leva uma vida aparentemente normal (excetuando-se o fato de não dormir faz um ano), até que conhece Ivan, um sujeito que está substituindo temporariamente um colega de Trevor na fábrica. Enquanto trabalhava, um gesto de Ivan acaba distraindo-o, e isto resulta num acidente onde um companheiro dele perde a mão numa máquina. A partir daí, o mundo de Trevor começa a desmoronar, e quem ele julgava amigo passa a ser um completo estranho para ele. Todos o culpam pelo acidente, pois algo não encaixa na estória de Trevor: quem é Ivan? À medida em que ele tenta reencontrar Ivan para provar sua inocência, ele acaba se relacionando com duas mulheres completamente dicotômicas: a primeira é uma prostituta loira a quem Trevor visita regularmente; a segunda, uma mãe solteira morena que travalha como garçonete na lanchonete do aeroporto, onde ele vai com frequência. A par disso tudo, ele começa a receber visitas de um "fantasma", alguém que entra em seu apartamento sem ele saber e põe um papel com um joguinho de forca na porta de sua geladeira, cujas letras (seis no total) são gradualmente escritas.

O mistério quanto a identidade de Ivan, o que de fato está acontecendo e quantas pessoas estão envolvidas é o ponto central da narrativa, mas o filme não se apóia apenas nele. A construção do personagem de Trevor é feita aos poucos, sem jamais ser jogado para segundo plano, o que é louvável num filme de suspense. Sua relação com Stevie (a puta) e Marie (a garçonete) são bastante interessantes, e acabam contribuindo mais para o mistério do que a própria investigação de Trevor. Particularmente, a cena no parque de diversões e no brinquedo "Rota 666" com Marie e o filho dela são de importância pivotal para a estória, assim como no momento em que ele confronta Stevie por um suposto envolvimento com Ivan. A performance de Christian Bale é ótima, e o trabalho de preparação do ator é mais que louvável, visto o seu assustador emagrecimento (ele queria emagrecer ainda mais, mas a produção o proibiu para que não prejudicasse sua saúde). O mesmo, infelizmente, não pode-se dizer de John Sharian, que transforma Ivan em uma mera caricatura por demais irreal e óbvia, o que prejudica a estória. Esta, por vez, também é prejudicada por uma direção insegura, que não soube aplicar a sutileza tão necessária para que o mistério funcionasse. No mais, a produção é correta, contando com uma fotografia escura e crua que reflete os sentimentos do personagem (novamente destaque para a "Rota 666") e uma trilha sonora um tanto omissa, mas que consegue criar tensão.

O filme também funciona em outras camadas, e é uma clara alusão a Dostoiévski; em especial dois livros: "Crime e Castigo" e "O Idiota" (este último, inclusive, aparece no apartamento de Trevor). Mais especificamente em "Crime e Castigo", já que conta exatamente a estória de um sujeito que comete um assassinato, se corrói pela culpa, e vai achar paz na prisão. Uma associação interessante que o filme faz é entre o peixe e a morte. A começar pela mais clara, a foto de Ivan segurando um peixe, que na verdade é de Trevor segurando um peixe (mostrando então que Ivan é uma projeção da vida passada de Trevor, a vida de um assassino); na cabeça de Trevor, o garoto Nicholas é morto em sua casa e enfiado no congelador, mas na verdade é o peixe que está lá; na cena do atropelamento, logo após o incidente, a câmera focaliza num pôster escrito "Wouldn`t you rather be fishing?" ("Você não preferiria estar pescando?"). Certamente devem haver mais exemplos espalhados que eu não consegui pescar (desculpem o trocadilho).

É um filme envolvente, sem dúvida, consegue criar um ótimo clima e personagens cativantes, mas eu não paro de pensar em como ele poderia ter ficado tão melhor, bastasse um pouco de sutileza ao tratar de certos temas. Basta compará-lo a um outro filme bem parecido, o maravilhoso A Estrada Perdida. Aliás, tente comparar Ivan ao Homem Misterioso e verá o que estou falando. No final das contas, não é uma obra-prima, mas é um ótimo drama psicológico que certamente merece uma sessão.

Comentários (0)

Faça login para comentar.