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Críticas

Cineplayers

O tempo, a jornada e a infância num dos mais mais significativos de Abbas Kiarostami.

8,0
Kiarostami despontou para o mundo depois de Close-Up, mas Onde Fica a Casa do Meu Amigo? é recorrentemente citado como a sua primeira obra de grande valor, onde sua estética e seu estilo apresentavam-se maduros, afiados, exibindo as marcas inconfundíveis do diretor iraniano. A sinopse é sucinta, absurda de tão simplória: Ahmad leva por engano pra sua casa o caderno do seu colega e pretende devolver, embora não saiba exatamente onde ele mora.

O filme percorre, de uma maneira bem menos evidente que seu sucessor (Close-Up), o terreno da ficção-não-ficção, tão querido por Kiarostami. Embora os personagens sejam filmados de uma certa distância, com uma câmera estática, com certeza há uma impressão de cinema verité presente, mediando a tragetória da narrativa. 

Parte da impressão acontece provavelmente pelo uso do que supomos serem atores amadores para interpretar os personagens do filme – não que as atuações sejam claramente ruins, pelo contrário, as pessoas expressam um certo peso no olhar, algo perdido entre a rigidez e a tristeza, que parece muito bom para ser atuado. A geografia específica dos dois vilarejos que servem de ambientação da história também contribuem para a impressão de verdade. Poshteh, o conglomerado vizinho, e Koker a vila onde mora Ahmad.

As duas cidades, mas mais especialmente Poshteh, são retratadas de maneira interessada, próxima, atentando para as texturas que fazem parte dos lugares: o chão de terra, as paredes mal rebocadas, as portas e janelas simples e de maneira, a estrutura em morros, etc. Mesmo que enquanto pano de fundo, o olhar do diretor compõe uma lógica de observação que contempla o cenário como parte primordial da estrutura dimensional da imagem. O cenário também faz parte do tema.

Porém, existem duas questões caras ao filme que mexem comigo de um jeito mais particular. A primeira é o tempo. O filme possui pouco mais de uma hora e quinze minutos, mas realmente quase nada acontece, porque Kiarostami investe grande parte de sua metragem em acompanhar o garoto percorrendo os locais, manifestando uma consideração temática constante em seu cinema: a jornada. Não é nem pelo fato de que Ahmed não consegue na real chegar ao seu destino (a casa do amigo), mas é que realmente os espaços pelos quais ele anda é que interessam, enquanto conteúdo narrativo, para o diretor.

No cinema, a jornada é tão importante quanto o tempo dedicado a mesma. Ao fazer sua câmera seguir pacientemente o menino de uma cidade a outra, na subida de um morro, na descida de um morro, o filme ressalta claramente o valor e significado que deseja atribuir a ela. Em oposição a filmes repletos de transições e cortes temporais que comprimem a jornada, Kiarostami contrói no seu uma relação entre espaço e tempo, tornando-os a história em si, acima de qualquer outra coisa. Poder sair da correria de um filme rápido e investir-se emocionalmente em um filme tão delicado e contemplativo é realmente reconfortante e emancipador.

A outra questão é a infância. Ahmed e as outras crianças do filme parecem ainda descolados da sociedade específica daqueles locais tal como ela está formatada. Isto é, eles ainda exercem certas liberdades individuais por serem crianças, embora precisem cumprir com as tarefas que lhes são entregues. O filme é bastante contemplativo, mas é interessante como ele, à sua maneira, desenvolve aquilo que Hitchcock ou Tarantino descrevem como “carrossel de emoções”. A terceira cena do filme, por exemplo, dura quase doze minutos e é basicamente Ahmed tentando convencer a ríspida mãe a deixá-lo ir até o outro vilarejo para entregar o caderno do colega. É angustiante e sufocante, emoções bem próximas do que o personagem deve ter sentido naquele momento. 

Ao mesmo tempo, revela como os adultos do filme exibem comportamento autoritário sobre as crianças, como se elas fossem mudas e invisíveis. Intransigentes, os adultos não ouvem as crianças e esse é, acima de todos os outros, o principal inimigo na jornada particular de Ahmed. Por outro lado, os colegas do menino parecem mais dispostos a ajudá-lo, sendo solícitos e bem intencionados.

Como exceção aos adultos rígidos, há um senhor que desempenha o esforço descomunal de sair de sua casa e descer para depois subir um conjunto de morros e escadas para guiar Ahmed até a casa do seu amigo. O senhor é bastante velho e anda bastante devagar, o que sinceramente irrita o menino apressado. Ele oferece uma flor ao garoto, e pede para que ele a guarde dentro do caderno. Ao final do filme, com espectador ciente da entrega de Ahmed em ajudar o amigo, um plano detalhe revela a flor esquecida dentro das páginas amassadas do caderno, denotando todo um simbolismo dessa jornada, dessa compaixão, dessa ternura. A mim, esse plano detalhe simplório teve a reverberação de uma bomba – algo completamente bom e arrebatador o bastante para eu simplesmente não aguentar. Kiarostami encerra o seu filme com uma imagem que o representa completa e inequivocadamente. Coisa de gênio.

Comentários (1)

Reginaldo Almeida | quarta-feira, 03 de Agosto de 2016 - 20:41

Um dos melhores filmes que já ví. Uma lição de solidariedade e humanidade.
Kiarostami mostra como um ser humano deve ser desde criança. E que os adultos, sejam pais. avós, professor ou mesmo um estranho, não educa, pelo contrário, deseduca (Mas ainda bem que existe exceção). BELO! (Kiarostami era um gênio)

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