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Críticas

Cineplayers

Em seu oitavo filme, Tarantino olha para si mesmo e não se vê.

5,0
Embora não tenha notado à época, há uma muralha separando a carreira de Tarantino antes e depois de À Prova de Morte, em 2007. Os filmes posteriores à sua colaboração com Robert Rodriguez em Grindhouse podem ser classificados como revisionismos históricos ou, mais adequadamente, flexões de gênero.

O gênero é conceito chave no cinema de Tarantino, mas vale observar que não há um filme de gênero em sua filmografia, exceção dada ao próprio Death Proof, do gênero/sub-gênero explotation, criado e desenvolvido para este fim. De resto, temos Bastardos Inglórios, Django Livre e Os Oito Odiados, que flexionam os gêneros de guerra e western, respectivamente, afim de se adequarem à visão de cinema desse novo Tarantino. De Cães de Aluguel à Kill Bill temos filmes multi-temáticos, indefiníveis genericamente, repletos de referências, reviravoltas e ambientações.

Todos que conhecem e admiram o cinema de Tarantino há muitos anos devem ter sentido o mesmo que eu quando Django Livre fora anunciado: finalmente veríamos Tarantino trabalhar com o western, um dos gêneros cinematográficos mais idiossincráticos e cativantes que há por aí. Alguns anos depois, Tarantino revisita a ambientação (em termos completamente diferentes, é verdade) em Os Oito Odiados e muitos não podem evitar sentirem-se um tanto decepcionados.

O crepúsculo da filmografia de Quentin Tarantino não parece mais tão animador. Seus filmes possuem certa vibração, que apenas um diretor apaixonado pelo seu artífice poderia conferir, mas faltam-lhes algo de substancial para colocar Django e Oito Odiados em patamares próximos aos de Kill Bill e À Prova de Morte, por exemplo.

Procurando entender com mais exatidão a carência de seus últimos dois filmes, peguei-me refletindo a respeito das características do cinema de Quentin Tarantino, principalmente para entender se eu percebia alguma divergência (temática ou dramatúrgica e etc.) de seu cinema, ou se apenas havia me cansado de seus filmes.

O cinema do Tarantino se caracteriza por personagens femininas muito bem criadas e desenvolvidas, sempre postas em evidência na narrativa; planos e enquadramentos elaborados e meticulosos, mas que não parecem geralmente atrair atenção especial para si, numa dinâmica da impercepção, que caracteriza o cinema americano clássico, ao qual Tarantino certamente referencia; uma trama essencialmente envolta na questão da violência – ela é o pressuposto e também o cume de seus filmes; cenas muito longas com diálogos naturalistas repletos de referências/auto-referências; e acima de todas essas coisas, o grande mote do cinema de Tarantino parece ser uma relação fortíssima entre o personagem e o cinema em si.

Pulp Fiction enfileira uma quantidade grande de tipos imersos em um oceano de referências e meta-referências capaz de fazer o mais fanático cinéfilo perder a conta; Kill Bill e mais ainda Jackie Brown elevam suas protagonista num jogo intricado de metalinguagem, em relação aos esteriótipos retratados em cada filme e, principalmente, em relação a elas mesmas; À Prova de Morte explora essa relação entre personagem-cinema em níveis absurdos, culminando certamente na presença de Zoë Bell, que interpreta ela mesma, no delicioso explotation de Tarantino. Django tenta infrutiferamente criar essa relação, mas o resultado é vergonhoso e inócuo.

Onde está a marca maior do cinema de Tarantino em Os Oito Odiados? Onde se encontram todas as outras marcas? Há, afinal de contas, algum personagem no oitavo filme do diretor? A única personagem feminina (Daisy Domergue, Jennifer Jason Leigh) tem certa presença, mas nenhuma personalidade. Os outros tipos que desfilam durante as quase três horas de filme são igualmente descaracterizados e vazios, a não ser por tiques e vestimentas ocasionais. Há o Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), o único de todo o filme que se aproxima de um personagem de verdade. Warren possui um forte background, fundamental para os sentidos construídos no filme, mas é apresentado de um jeito forçado e quadrado, em diálogos que chegam a ser maçantes e atuações que, infelizmente, chegam próximas de serem vergonhosas.

Claramente a ideia de Tarantino era partir de uma premissa que pudesse colocar cerca de duas horas de filme dentro de um único local, onde diversos personagens pudessem desencadear uma trama de paranoia e violência. Todo o resto foi sendo construído depois. Criar nesses termos parece indicar que a Tarantino interessava mais exibir mesquinhamente o seu poder e controle como diretor do que contar realmente uma boa história. A conclusão trágica é que o poder de Tarantino é mais frágil do que aparenta.

O faroeste é enquanto gênero retratado como reflexo moral/histórico do homem/América. A América de Quentin Tarantino é aqui retratada como uma câmera obscura cuja fresta de luz revela a silhueta de um diretor acorrentado a si mesmo, condenado a repetir-se. O domínio técnico da câmera e do roteiro  soam, talvez pela primeira vez, como paródia. Dos cigarros red apple à Tim Roth, inexplicavelmente mimetizando Christopher Waltz, Os Oito Odiados peca pelo excesso de sua autoindulgência, pela gordura em sua execução.

Há um grande banho de sangue no terceiro ato do filme, onde a verossimilhança dá espaço ao espetáculo de uma violência cinematográfica celebratória. Corpos explodem como balões recheados de líquido vermelho, tintando a palheta de cores do filme. Não há desculpas, porém, para que o filme se desenrole por duas horas antes de começar. Não há personagens bem construídos e a atmosfera é no máximo sugestiva do que imposta de fato. As duas horas se arrastam porque ao filme interessa cento e vinte minutos de mormaço, para gerar um impacto fabricado nos outros quarenta minutos de ação. Em suma: truque barato.

Talvez o grande momento de Oito Odiados seja a surpreendente incursão de um narrador – ainda silencioso – no meio da história. Um truque de certa forma também barato, mas certamente vigoroso, que reflete um cineasta capaz de transitar por entre camadas de uma mesma história, dando-lhes tons diversos. Infelizmente, a incursão do narrador (e consequentemente de uma atmosfera pulsante e instigante) é breve. Junta-se a ela um penúltimo capítulo que antecede os eventos do filme, que demonstra como uma suspensão/deflagração de violência pode ser feita de maneira enérgica, ao contrário da letargia que dá o tom ao filme.

A moral inscrita ao final do filme indica que a obra se propõe falar sobre como o homem (ou a América) está fadado a agir por si mesmo contra seus irmãos, gerando consequências violentas e destrutivas. Uma atribuição de sentido tacanha que vai contra a proposição do cinema de Tarantino até então - “[violence] is fun!”, nas palavras do próprio.

Após À Prova de Morte, o diretor parece convicto em se reinventar e a descobrir novos sentidos em seu cinema. Há Bastardos Inglórios, um filme ambientado na segunda guerra formado basicamente por esquetes, onde o controla dramatúrgico e espacial de Tarantino é afiadíssimo. Django e Oito Odiados indicam um retrocesso. Mais do que isso, indicam uma completa falha de diagnóstico. O interesse em fazer cinema do diretor parece maculo. Caso permaneça o mesmo em seus dois últimos filmes (o ego ao invés da paixão), sua aposentadoria será, infelizmente, motivo de celebração.

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