Em dado momento da projeção de O Mal Não Existe (Aku wa sonzai shinai, 2023), dois personagens conversam, dentro de um carro e com alguma banalidade, sobre seus desejos em relação aos encontros marcados por aplicativos, e sobre como a pandemia acentuou essa vontade de ter alguém para não se sentir tão sozinho. Esse diálogo acontece entre dois representantes de uma empresa que deseja construir um glamping, ou um camping luxuoso, aos arredores de um pacato e afastado vilarejo no Japão, que tem como principal elemento de sustento a água do rio, ameaçada de poluição caso a construção desse empreendimento aconteça. É dos mais provocadores esse recorte acontecer tão logo após os dois representantes da empresa, que não demoramos a perceber que são meras marionetes empresariais, terem uma reunião com representantes do vilarejo que não apenas se preocupam com a sustentação econômica daquela região, mas principalmente com os efeitos devastadores que tudo aquilo pode trazer para a natureza ao redor e, consequentemente, em seus modos de vida.
Ryūsuke Hamaguchi, muito longe de ser um novato no cinema, mas que se apresentou ao mundo de forma mais ampla com o belíssimo alcance de Drive My Car (Doraibu mai kâ, 2021), situa a floresta como essa presença silenciosa e definidora de conflitos e decisões, como o ponto de encontro entre interesses que alavancam uma tensão já estabelecida desde os letreiros iniciais do filme: “Il male esiste” (O MAL EXISTE) “Il male non esiste” (O MAL NÃO EXISTE). Filmes sobre interesses corporativos em cima de populações vulneráveis socialmente não são nenhuma novidade no cinema, é claro, daí a tática de Hamaguchi reside, num filme de quebras: a longa cena inicial filmada num contra-zenital em travelling embalada pela música cheia de lirismo de Eiko Ishibashi é subitamente interrompida pela imagem de uma criança procurando pelo seu pai, Takumi (Hitoshi Omika), que trabalha cortando lenha.
Tais imagens introdutórias levam Hamaguchi a olhar, sem nenhuma pressa, para o cotidiano pacato daquela pequena região e toda sua relação de sobrevivência e respeito com a floresta que os cerca, narrativa essa que se estende até ser novamente quebrada pela introdução destes forasteiros que representam os interesses privados de empresários e fornecedores. Novamente, essa quebra, essa intromissão de presenças que não pertencem àquele ecossistema abre as portas para que o diretor intua novamente essa câmera contemplativa, observadora sobre as tensões que se construirão a partir dali. Os representantes da empresa são abobalhados, se esquivam das indagações mais pertinentes quando lhes é conveniente, e se acuam, mas também se sensibilizam, diante daquela sociedade que não é completamente avessa à ideia daquela construção, mas que não aceita que a natureza que os cerca seja desconsiderada, maltratada.
Em mais uma quebra, Hamaguchi nos leva, a partir daí, a acompanhar estas duas figuras que entendem as questões daquela região e buscam entendê-las para buscar soluções em comum, por mais que tudo pareça um esforço inútil, no fim das contas, já que o lucro de um lado não pode vir sem a degradação social do outro. Dá-se a impressão de que existem dois filmes em um dentro de O Mal Não Existe, o primeiro sobre as consequências da expansão capitalista e o segundo sobre a coexistência com essa natureza onde a câmera se torna uma observadora que parece ansiar por algo, justamente pelo encontro entre esse “dois em um” que unifica a narrativa de Hamaguchi. O tempo, ou a dilatação deste, é um dos fortes aliados do diretor nesse processo. Não somente pelo poder observacional, mas pela decupagem que se reinventa a cada quebra que Hamaguchi propõe (lembra fácil o Apichatpong Weerasethakul) e acentua outra presença não tão óbvia dentro do filme, mas que anda de mãos dadas com a tensão crescente que acompanha os interesses de cada lado: afinal, de onde o mal pode vir? Ele realmente se faz presente? Ele realmente EXISTE?
Não é do interesse de Hamaguchi trazer respostas definitivas para isto, como revela o paralisante desfecho, assustador em sua inconclusão e que abre um rompante no debate moral levantado por O Mal Não Existe. O que existe é essa convergência entre a natureza enquanto espaço físico e sua influência na natureza humana, um filme de ações e reações, sobre o espaço que nos cerca. O espectador espera pelo machado que vai errar o alvo, pelo tiro que irá acertar em alguém, pela erva colhida que pode se revelar tóxica, pelo predador que pode surgir do meio das árvores. Mas o mal, de um jeito ou de outro, pode se levantar de onde menos se espera.
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