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Notícias do Fim do Mundo

(Notícias do Fim do Mundo, 2019)
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Críticas

Cineplayers

Provocações para o novo milênio

7,5

Rosemberg Cariry demorou quase 10 anos para concluir Noticias do Fim do Mundo, seu novo longa metragem com cheiro de anarquia, gosto de liberdade e cara de provocação. Vindo de Rosemberg, lógico que isso tudo está imbuído também de extrema doçura e compreensão do universo abordado. E que universo!, o diretor ousou criar uma parábola sobre o Brasil e o mundo disfarçados de Jenipapuaçu, um país fictício que parece muito com o nosso. Aos poucos, percebemos que o país que tem Kibuna como capital bebe na fonte de inúmeros problemas de ordem mundial na atualidade, uma forma do veterano diretor discutir temas que o incomodam, tocando em inúmeras feridas de maneira audaz e desafiadora, ainda que seu foco seja exatamente o que esperamos diante do quadro apresentado: os países opressores, a banalização da nossa História, a eterna busca por mártires, as manifestações revoltosas, e muito mais.

O filme se apresenta na cartela inicial como sendo um "cinema figural e transbarroco", com isso nos remetendo imediatamente ao cinema que Edgar Navarro e Luiz Rosemberg Filho sempre aludiram, repletos de signos, experimentações e principalmente liberdade artística e narrativa. Sem recursos abundantes, o filme opta pela criatividade pra resolver questões de direção de arte e maquiagem, com ótimos resultados. Como se trata de um projeto desenvolvido durante uma década, o filme passeia pela reestruturação de um país de um polo a outro, se descobrindo em realidades muito diversas. Mas como só os grandes visionários poderiam situar, 'Notícias...' faz muito sentido nos dias de hoje, com sua ameaça externa decisiva, seus governantes irresponsáveis e sua busca por justiça fora dos meios tradicionais, buscando a mobilização social como ponto focal narrativo.

Outro acerto premonitório do autor foi imaginar uma realidade onde a arte sustente o peso e a primazia da mudança, através de um grupo de artistas que sequestram o embaixador de Golem, país vizinho que investiu na artilharia para alimentar outros países interessados em guerra. Os revoltosos são todos trabalhadores da arte liderados por Alexandre Taylor, que se autoentitula como o líder Jacauna, um ator em processo de decadência que está a frente de um movimento popular que reune artistas marginais para lutar contra a opressão do governo. Escondidos num ônibus velho, esses artistas revolucionários são, a princípio, um grupo de reizado ligeiramente anarquista que parte até os cantos oficiais do país para reconhecimento de suas dificuldades para saná-las.

Aos 66 anos, Rosemberg filma com o frescor de um estreante, com muita picardia e um ímpeto de mudança forte, que contamina toda a produção. Apesar da curta duração (menos de 70 minutos) e da agilidade que o filme tem, permanece dentro do ônibus-bunker durante quase a totalidade de sua projeção, sem nunca entediar ou parecer vazio de ideias, o oposto disso. Com essas características, qualquer produção assumiria os riscos do humor deliberado que Rosemberg não compra, deixando o filme num lugar de ousadia em denunciar suas metáforas sem uma chave cômica própria, passeando pelo roteiro só na base da ironia mais adensada. Mais uma prova da coragem do projeto, que desafia o espectador a embarcar em uma jornada desconhecida sem aliviar sua construção, que pode tanto subverter tradicionais espaços teatrais quanto apresentar um contexto 'videogame' para guerras e chacinas, promovendo uma reflexão brilhante sobre a facilidade do ato de matar. 

Com participações especiais de inúmeros amigos e influências (além do já saudoso xará de Rosemberg, Helena Ignez, Cláudio Assis, Chico Diaz, Silvia Buarque, entre outros), o palco é armado para Everaldo Pontes brilhar, e ele o faz como sempre, desfilando muita inteligência cênica a um personagem que gravita entre o naturalismo e a alegoria, fonte da obra. Com todo o atraso para concluir o filme, 'Noticias para o Fim do Mundo' acaba sendo lançado no momento onde Inferninho, Sol Alegria e Bacurau também promovem revelações através do amor e da união, que eventualmente farão a diferença. É dessa fatia do nosso cinema hoje que o novo lugar de Rosemberg Cariry faz parte, reorganizando as histórias pessoais pelo viés revolucionário, que em um brilhante trabalho de montagem entregue a si mesmo, Cariry volta para o cenário musical mais relevante que nunca.

* Visto no 29º Cine Ceará, 2019

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