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Críticas

Cineplayers

Entre a solitude de noites fugazes.

10,0

Ao falar de Fellini, praticamente aludimos automaticamente à memória obras como (idem, 1963) ou A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960) e suas célebres imagens. Esta segunda veio imediatamente após Noites de Cabíria, consagrando definitivamente o diretor que já havia filmado monumentos como A Estrada da Vida (La Strada, 1954) e Os Boas-Vidas (I Vitelloni, 1953). Ahhh, essa palavra, vida, pulsa na filmografia do cineasta.

A cena inicial deste premiadíssimo Noites de Cabíria é extrapolada, deriva do trágico para o humor, o atestamento de infortúnios pessoais que se tornaram corriqueiros em algumas existências. Assistimos a um homem empurrar uma mulher em um rio e depois fugir com sua bolsa. Ela quase se afogou observada por crianças. Ela é Cabíria, uma prostituta, a protagonista detentora das mais ternas ilusões de felicidade, de futuro e confiança frente às projeções românticas que ruem a cada investida nas noites de expectações resultando em manhãs solitudes.

No ato de abertura há uma indagação consciente sobre o caráter da obra ser um provável poço de injustiças as quais terminamos solidários por convenção. Identificações projetivas é algo que o cineasta trabalha bem. Longe dessa perspectiva simplória, o filme transcorre em caminhos diferenciados. Cabíria apareceu brevemente em Abismo de um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952) do Fellini e veio legitimar, com Giulieta Masina, uma das personagens mais importantes dirigidas pelo diretor.

Dentre diferentes óticas que a filmografia de Federico Fellini enalteceu, a proposta desta alicia a promessa de felicidade, uma busca incessante inalcançável. Vai além, busca identidade de existência, de ser real e palpável, ainda que trivial, como na noite em que Cabíria encontra um famoso artista e precisa assegurar que existiu em suas mãos por algum instante, nem que seja através de uma fotografia assinada comprovando sua subsistência fugaz em uma de suas tentativas, algo que provavelmente nenhuma de suas amigas conseguiria. Dessa noite factual, no entanto, para o espectadores, resta a imagem de Cabíria dormindo presa em um banheiro. Uma imagem deprimente. Trata-se de uma epopéia sensorial transmitida pelas lentes competentes do diretor que vislumbra o romance em seus quadros em preto e branco, transpondo toda a espontaneidade com a qual sua estrela lida com as desilusões. São uma série de emoções consternadas.

Em outra cena, quando está no show de magia, chega atrasada e é convidada a subir ao palco. Estremece em negações, mas termina cedendo como se fosse a um picadeiro. Ela torna-se o centro das atenções de um povo sedento por entretenimento. Aí assistimos a suas defesas, sua abertura cessada pela censura, temente por seu papel ali, do que fará, do que dirá. O medo acompanha angústias e a cena simboliza as repressões que Cabíria voluntariamente lida. Um suspiro silencioso e a cena converte-se num ilusionismo místico de possibilidades as quais a personagem termina despida de mentiras num espetáculo de constrangimentos.

O que marca no roteiro de Noites de Cabíria são suas transições. Tudo circula, tudo muda desfazendo-se e remodelando-se de outro modo, seguindo uma repetição tal como a trilha de Nino Rota que ganha diferentes contornos ao longo da história; Cabíria também ganha diferentes contornos em torno de seus casos românticos em noites que dispensam sequências. O roteiro – que teve a mão de Pasolini – não se preocupa em ordenar as noites da jovem sonhadora, elas acontecem em dias diferentes sem qualquer ligação, a não ser pelos personagens comuns em sua volta que convivem em situação análoga compartilhando igualmente suas angústias e amores feridos pela indulgência da indiferença. Até a fé entra nesse percurso enquanto desejável solução para mudanças.

E Giulieta Masina infere na qualidade dessa protagonista de índole juvenil, cômica e aventureira em suas noções ingênuas com relação a vida que vive, ainda que tenha experienciado muitos desencantos. Seu fugor de idealizações se manteve irretocável mesmo após cada desventura e decepção. Masina exprime toda essa brandura em suas expressões de melancolia mascarada, carregando um sorriso alentador. E vai ainda mais longe, nos aproximamos de sua personagem graças a sua graça em cena, como uma espécie de arlequina que se entrega à comicidade de casos, encenação de amarguras que definem seus desconsolos. Ela se traveste e torna-se numa persona tragicômica com suas caracterizações particulares. Soma-se a seus casacos cuidadosamente escolhidos, suas meias e sua maquiagem enquanto representações.

Passados anos após o fim da guerra, a retratação vista a partir de Roma é de uma Itália juntando os cacos dividida entre ricos e pobres com uma lacuna vazia entre os extremos. Uma casinha miserável distante do centro é motivo de honra para Cabíria que não se intimida pelo poder alheio. Ela até se orgulha do que tem e brada soberba. De fronte às realizações obscurecidas pelo contexto que afunila seus meios, carregado pelo neorrealismo condescendente com a trama montada, Cabíria parece fadada a um destino que Pasolini discutiu anos depois em Mamma Roma (idem, 1962). O retrato é quase o mesmo.

Diante tantas transições e pessoas que contribuem para o aprisionamento dos comportamentos românticos dessa singela protagonista, temos cada vez mais certeza do rumo que se segue a história e o provável desfecho hipotético que Cabíria poderá ter. Em um momento, ela questiona locais decadentes onde já teve que dormir, ainda que omita em disfarces tímidos. Há pessoas vivendo em condições precárias, resquícios de escolhas e condições inerentes às suas oportunidades. Cabíria os vê e prefere ignorar como se fossem distante de sua realidade. Essa mesma realidade termina por abastecer a obra de pessimismo sendo encarado com um otimismo empolgante, traduzido nas sutilezas de um simples sorriso quando a esperança pareceu perecer pungentemente.

Comentários (2)

Heitor Romero | quinta-feira, 04 de Dezembro de 2014 - 07:19

Esse filme é lindo, um dos finais mais tocantes de Fellini. A crítica esté excelente, Marcelo, parabéns :)

Gustavo de Souza Silva | quinta-feira, 04 de Dezembro de 2014 - 12:51

Até então não o conhecia. Já entrou na minha lista de filme para as férias!

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