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Críticas

Cineplayers

A lógica lupina.

5,0
Após o aclamado Sala Verde (Green Room, 2015), um dos suspenses mais queridos da crítica dos últimos anos, o diretor Jeremy Saulnier entrou no radar como uma boa alternativa aos thirllers genéricos e sem muita personalidade que dominam a indústria do cinema americano atualmente. Seu mais recente trabalho vem na rabeira desse pequeno sucesso como investimento da Netflix, em uma tática da plataforma de chamar para si produções originais comandadas por nomes com um mínimo de prestígio e grande potencial, e assim combater a má fama trazida por outros tantos títulos irrelevantes que produz a cada ano. Noite de Lobos (Hold the Dark, 2018) vem na medida para a necessidade de Saulnier de voltar a acontecer e perpetuar uma carreira, assim como traz o ar de produção “séria” para a Netflix provar que também pode assinar trabalhos de maior relevância e impacto. Pena que o produto final não favoreça nenhum dos dois. 

Noite de Lobos segue a onda que hoje é chamada por muitos de pós-horror, um termo cunhado equivocadamente para denominar aqueles tipos de filme do gênero mais voltados para abordagens minimalistas, psicológicas, reflexivas ou atípicas para o terror/suspense – algo que sempre existiu no cinema, mas que pra muitos é uma novidade que merece nomenclatura própria. A ideia é estar sempre rompendo as expectativas e correndo na contramão do que o público supostamente espera, apostando em uma dramaturgia contida, roteiro intricado e aberto a muitas interpretações, novas formas de explorar o uso da violência e assim por diante. Mas a diluição dos preceitos mais elementares na construção de um suspense ou terror nem sempre traz algo de positivo ou relevante e Noite de Lobos é a prova de que tudo pode não passar de mera enrolação. 

A trama tem um fundo alegórico que satura em um mesmo plano o homem em seu estado racional e o seu estado animal, trabalhando os contrastes que podem existir entre os dois lados e o ponto de encontro em que os dois se tornam um só. Em um lugar remoto e praticamente ermo como o Alasca, a presença dos lobos funciona como metáfora para a situação de um caçador chamado por uma mãe para ajudá-la a encontrar o filho perdido, que segundo ela com certeza foi atacado por um dos animais selvagens da região. Enquanto a investigação se desenrola, o pai da criança sumida volta da guerra no Iraque se deixa vencer por seu lado mais nefasto ao descobrir o paradeiro do filho. 

Saulnier é bom na exploração dos espaços e na forma como dispõe de seus atores naquela imensidão branca e gélida do Alasca, reforçando a ideia do isolamento psicológico de cada um e da distância física e emocional que também os separa. A violência surge sempre como algo seco, bruto e repentino nesse universo de poucas palavras e muitas insinuações. A presença dos lobos paira como um prenúncio macabro da natureza violenta e reprimida de todos ali. Nesse embate entre o selvagem e o humano, o diretor tenta equilibrar uma narrativa tão dispersa que os pontos mal se ligam e o filme acaba nunca revelando a que veio. 

O maior problema de Noite de Lobos está justamente em um roteiro que se pretende tão enxuto que acaba soando apenas evasivo, nunca permitindo real interesse por qualquer personagem, de modo que ao fim da projeção não é possível sequer eleger um protagonista ou um fio condutor. O que começa com a investigação do caçador logo se transfere para a busca do soldado em busca de vingança pelo que foi feito ao seu filho, mas ao mesmo tempo se volta para uma subtrama de um policial local lidando com os fantasmas do passado que assombram a pequena e rancorosa população local, enquanto o pai se revela aos poucos uma espécie de lobo assassino que se liberta quando ele coloca uma máscara tribal. Quase uma releitura do mito da caverna e sua ideia de diferentes percepções de mundo e realidade, o filme começa com uma insinuação mística, fantástica, para aos poucos se deixar engolir pela racionalidade e praticidade das ações dos personagens. 

A intenção é chocar pelas atitudes e lógicas animais adotadas pelos personagens. Eles possuem a mente de lobos, o instinto predatório, tem em si a necessidade da sobrevivência e preservação da espécie, o que muitas vezes envolve os sacrifícios dos próprios membros da alcateia. Conforme o filme se livra da racionalidade humana, mais absurdo e sensorial se torna, sobrevivendo somente do selvagem, do instintivo, do sangue. A ideia é interessante e funcionaria bem se as tramas estivessem melhor ligadas e não tão dispersas, sendo inexplicável que o clímax se dê em um tiroteio de quase 10 minutos em que a maior parte dos personagens envolvidos é apenas figurante, enquanto o núcleo da família lupina em busca de um reagrupamento de seus membros fique de fora. Seja como for, pelo menos nesse meio todo, a mensagem final de Saulnier é assustadoramente clara: o nosso lado humano é apenas uma fachada a ser rompida e dominada pelo animal irracional que existe em nós quando diante do perigo e do cheiro do sangue. 

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