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Críticas

Cineplayers

A insígnia do tempo captada no gesto, no olhar e no espetáculo cênico revelado no palco de John Cassavetes.

9,0

A característica mais notável dessa obra de John Cassavetes é a inserção teatral enquanto dramaturgia, principalmente dizendo respeito às atuações. Há uma diferenciação notória em cena que incide sobre o cinema e o teatro, algo cuidadosamente tratado e dirigido. Os atores são pilares desse filme multitemático e Gena Rowlands, com sua Myrtle Gordon, entrega uma das performances mais impressionantes já oferecidas pela arte da ilusão, pela ilusão da atuação, ou não atuação, da naturalização como emenda de uma personagem sem restritas dimensões. A linguagem particular do cineasta encontra aqui um de seus maiores desafios e impressiona.

John Cassavetes investe como de hábito na concepção das características individuais de cada um de seus personagens. Aqui, de personagens vivendo personagens, criando intersecções temáticas e influindo na percepção do artista no palco, e para nós em frente à câmera. Noite de Estreia é um filme tão bem narrado que ficamos absolutamente amarrados à história. Seus enquadramentos e sua iluminação incisiva são tão absorventes que é quase impossível passar ileso a sua atmosfera e assimilações, um turbilhão de contrapontos de vivências teorizadas pela angústia do tempo, precisamente pela linha do envelhecimento e inevitável morte.

A naturalização das personas é um atributo quase autoral do diretor que labora com fineza.  Aqui, ele dá uma margem de liberdade aos atores, em certo ponto nota-se uma métrica. Tal condição é proposital, além de autoral. Seguinte à meticulosidade dos passos e nuances projetivas, típicos dos trejeitos mais expressivos com investimento em faculdades corporais e de voz, mais numa lógica de representação fielmente teatral, o filme converte-se em outra coisa. Quando a cortina sobe, a lógica esmiuçada confronta-se à percepção inicial. Assistimos a uma peça filmada. O filme inicia-se recorrente e se acentua como parte natural do tempo, como uma lacuna entre margens ignoradas – outra característica de seu realizador.

Passamos por distintos questionamentos a respeito dos temas inseridos dentro das representações. A câmera busca todo o tempo as expressões e a projeção termina quase que numa inevitável empatia orgânica. Provém obviamente do fato de uma escolha estética, a base básica da imagem que se lança em meio aos personagens, desconstruindo-os a ponto de questionarmos se atuam ou se revelam-se. Acompanhamos o cotidiano da construção de uma peça até a noite de estreia do sugestivo título, ápice da expectativa de todos os envolvidos na criação que se reinventa.

Em meio às investidas da obra, parece evidente o laço entre o que é real para a protagonista com o real de sua protagonização na peça encenada. Vários são os instantes em que a crise é direcionada a distintas possibilidades de resoluções, mas nenhuma parece dar conta suficiente da desordem psicológica de Myrtle, a estrela ofuscada pelo tempo. Em concordância com o caos, assistimos a uma atriz ébria, estando o alcoolismo subjugando seu drama. A negligencia de sua conduta vai parar nos palcos com a plateia assistindo a ascensões, quedas e desconcertos, chegando à crise no palco a tríade: criação, representação e entretidos. Os diálogos objetivos compõem essa dinâmica caótica, especialmente com o diretor e roteirista.

Análoga, porém em circunstância diferente, está Crepúsculo dos Deuses. Se no clássico de Billy Wilder existe uma crise instalada em decorrência do envelhecimento e consequente extinção dos interesses dos realizadores por Norma Desmond, em Noite de Estreia, num grau de comparação, a lógica parece residir justamente na transição da jovialidade a velhice. O filme se passa dentro dessa lacuna temporal a partir da sensível vivência de sua protagonista. Tal questão é estimulada por uma tragédia, o atropelamento de uma fã declarada, uma jovem de 17 anos que morreu na porta do teatro após perseguir sua ídola. Ela não poderia morrer num outro local que não fosse esse.

As emoções tratadas nas obras de Cassavates tendem ao desequilíbrio emocional de suas personagens femininas, especialmente quando essas são retratadas por Gena Rowlands, sua esposa. Foi assim em Uma mulher sobre influência, talvez seu filme mais emblemático, que representa bem essa característica. A quem permita-se adentrar em tramas psicológicas com personagens fortes cujos comportamentos são passíveis de estudo psicológico e antropológico, favorecidos por inferências artísticas como apoio ao cinema independente de seu realizador, encontrará em John Cassavetes um vigor indiscutível cuja sensibilidade é subliminar e as (in)resoluções criativas são intensas.

Nas introspecções tão bem dispostas pelo roteiro, percebemos as narrações de Myrtle questionando seu papel na peça, temente quanto ao seu envelhecimento e o que isto pode lhe acarretar em sua carreira nos palcos. O que significará essa interpretação para seu futuro é a angústia que move a trama e nos enlaça por catarse. Compartilhamos tal angústia. Tal drama articula-se incisivamente na construção da história a partir dos bastidores, no íntimo de seu decurso e nós, espectadores, adentramos nesse meio como quem aguardou pela noite de estreia e sentou na plateia esperando para assistir ao espetáculo de representações, o intento da cênica terminante de John Cassavetes.

Comentários (5)

Paula Lucatelli | sexta-feira, 17 de Abril de 2015 - 22:38

Meu amigo, ao abrir o portal do Cineplayers, juro, desceu uma lágrima!!
Filmaço!!! OP!!!!

Wellington Junior | sábado, 18 de Abril de 2015 - 12:02

Todos os filmes do Cassavetes são épicos da alma humana. O diretor da minha vida. Belo escrito.

Pedro Degobbi | sábado, 18 de Abril de 2015 - 16:06

Filmaço! Um dos finais mais divertidos que já assisti.

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