O cinema, como produção midiática e como forma de arte, é articulado a partir de uma série de relações com a câmera como o sujeito de um olhar. Essa câmera-sujeito não é autônoma, nem uma mera ferramenta do olhar de um autor independente: mas um dispositivo histórico, político e econômico. O gesto de filmar, assim, nunca é inocente – exige um engajamento, uma tomada de partido. A perspectiva fílmica, desse modo, está sempre ocupando um lugar no mundo: criando relações afetivas e políticas e sendo produzida também junto a elas.
No Interior do Alabama: A Vida em Hale County (Hale County This Morning This Evening, 2018), documentário dirigido por RaMell Ross, nos apresenta essa rede de relações sensíveis com a câmera e através dela. O sujeito do olhar, nesse caso, interaje com os personagens, atravessa o lugar representado e articula, como imagem fílmica, os gestos e movimentos de uma comunidade. Aqui, o produto final é uma cartografia afetiva de Hale County, no interior do Alabama, sul dos EUA.
O documentário tem a qualidade única de parecer um organismo vivo – por vezes, assistindo ao filme, tenho a impressão de que posso senti-lo respirar. Isso se dá, suponho, porque o seu objeto, aquilo que seria “documentado”, não é um dado do passado ou um “outro” distante para o realizador, mas todo um mundo presente, visto com muita proximidade. Hale County, o lugar, compartilha o tempo e o espaço com a câmera que o observa. Fica até difícil distinguir Hale County dessa forma audiovisual com que a vizinhança se materializa no filme.
Se o resultado dessa abordagem é mais contemplativo, o motivo para isso talvez seja a própria característica dessa aproximação – no que o documentário acompanha o ritmo do lugar e de seus habitantes. O que temos, então, são fragmentos da vida: momentos de ócio, a experiência de um corpo derivativo. Acredito que Hale County alcança o que tem sido almejado nos filmes mais recentes de Terrence Malick: uma forma da vida, de sua inconstância e de seus movimentos.
Diferentemente de Malick, no entanto, Ross não busca tratar essa experiência vivida como universal. É muito claro quem é esse corpo e que lugar é esse que ele habita. Hale County, afinal, é um filme sobre pessoas negras que vivem em uma das regiões mais expostas ao racismo dos EUA. Tomando isso em consideração, o documentário vai além de se aproximar visualmente do mundo afetivo dos seus personagem: ele reconfigura o regime de visibilidade em que aqueles corpos estão inseridos.
Hale County se propõe a redescobrir uma paisagem e um conjunto de personagens ao estabelecer com eles uma outra ética de visibilidade. Uma proposta semelhante aparece no curta-metragem brasileiro Travessia (idem, 2017), de Safira Moreira. Entendendo que famílias negras costumavam ser historicamente representadas na fotografia por famílias brancas, estas detentoras dos dispositivos do olhar (seja a câmera fotográfica, a propriedade em que a foto é registrada etc.), a cineasta convida pessoas negras a serem fotografadas por ela, em um outro regime político de visibilidade – um de proximidade e reconhecimento.
Ross, que se mudou para o Alabama como professor de fotografia e treinador de basquete, começou a filmar “usando o tempo para entender como vínhamos a ser vistos”, segundo nos diz em uma cartela ao início do documentário. Hale County é uma recriação do visível e das condições de visibilidade, é uma reformulação do olhar dirigido a essa comunidade, estabelecendo, em contrapartida, uma outra relação dos personagens com serem vistos. E o filme – embora pareça frequentemente inebriado pelo mundo que está descobrindo – nunca é autoindulgente. Há conflito no uso da câmera, na ferramenta do olhar: há, por exemplo, quem prefere estar fora desse campo de visão e ou quem deseja determinar por si mesmo as condições com que são vistos. As relações do cinema com o mundo são assim reestruturadas, mas ainda presentes.
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