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Críticas

Cineplayers

Uma prova de que o cinema pode falar sobre estereótipos sem cair no lugar-comum.

8,0

George Cukor, um dos grandes diretores americanos da Era de Ouro do cinema americano, que entregou, entre outras obras, Núpcias de Escândalo, Minha Bela Dama e foi um dos diretores não-creditados de E o Vento Levou... foi também o responsável por este trabalho menor, no sentido de não tão popular. Menor, mas ainda assim um dos melhores de sua carreira. Nascida Ontem é, como tantos filmes daquela época, provindo de uma peça da Broadway – e o fato de se passar quase que totalmente em apenas um cenário certamente denuncia essa origem. É um dos bons exemplos que o cinema pode falar sobre estereótipos (neste caso, sobre a figura da loira burra) sem cair no lugar-comum, fornecendo material de qualidade aos espectadores.

Emma é uma mulher que teve uma infância complicada e acabou do lado de Harry, um daqueles homens que conquistam as coisas pela força bruta e um pouco de sorte. Ela não é muito culta, por causa de sua origem humilde, e ele tampouco é inteligente, conseguindo as coisas com a ajuda de seus capangas. Harry é uma espécie de mafioso. Agora ele quer se envolver com a política e vai parar em Washington para negociar com um senador também desonesto. Lá conhece o jornalista Paul, que ganha a missão de “ensinar” etiqueta a Emma, enquanto Harry cuida dos negócios. Paul ensina muito mais do que etiqueta a Emma – ensina a questionar o mundo. E ela começa a questionar o trabalho de Harry e passa a agir, pela primeira vez, contra os desejos do seu homem. Os dois – Emma e Paul – claro, acabam se apaixonando.

Na Broadway, a peça também era protagonizada pela atriz principal do filme – Judy Holliday. Judy não era a favorita da Columbia Pictures para o disputado papel. Antes dela, Jean Arthur e Rita Hayworth foram cotadas. Rumores contam que Marilyn Monroe também chegou a fazer testes para o papel, mas Harry Cohn, chefe do estúdio, sequer se preocupou em assistir à sua performance. E provavelmente só porque eram os anos 1950, que ainda continham certa inocência no ar, é que uma atriz como Judy em um papel como Emma poderia levar o Oscar de melhor performance em papel principal. De fato, seu papel de loira burra que aprende a ver as coisas de uma forma “inteligente” é encantador, algo raro para sua proposta. Essa sua vitória, porém, é vista de forma não tão simpática hoje em dia, já que Judy levaria o prêmio sobre Gloria Swanson, por Crepúsculo dos Deuses, que havia proporcionado uma das grandes interpretações daquela década.

Nascida Ontem é, falando de forma bastante objetiva, uma comédia romântica das melhores. O filme tem um ritmo magnífico – não é tão alucinante quanto as comédias “screwball” (aquelas com personagens avacalhados, geralmente ricos, que não param de falar um momento sequer) e deixa espaço para que seus personagens possam ser analisados pelo espectador, ao apresentar cenas mais contemplativas, passeando pelas belas locações de Washington. Dentre tantas, a melhor característica de Nascida Ontem são os diálogos inteligentes, sempre interessantes e sempre divertidos, quando isso é necessário. A segunda melhor característica é o arco de aprendizado pelo qual passa Emma: no início ela realmente é o estereótipo da loira burra, até sua voz estridente cria facilmente preconceito por parte do espectador, mas graças ao roteiro, diálogos e, em parte, ao talento de Judy Holliday, a personagem vai se aprofundando cada vez mais – e quando o clímax chega ele jamais soa forçado, algo comum em comédias românticas que não prezam pelo roteiro.

Talvez o único ponto fraco – e essa é uma característica do cinema da Era de Ouro de Hollywood – é o fato de Paul apaixonar-se muito rapidamente pela mocinha, Emma. Não há motivos, além da beleza física, pelos quais um profissional tão culto e eloquente se apaixonaria por uma pessoa tão limitada (e, novamente, com uma voz tão aborrecedora) quanto a Emma do início do filme. Esta é, digamos, uma licença artística, perfeitamente aceitável no gênero, ainda que o contrário fosse o ideal. As feministas de hoje em dia considerariam Nascida Ontem um atentado – Emma é tão humilhada pelo seu namorado Harry que em alguns momentos o filme adquire uma atmosfera bastante pesada. A bela atriz é xingada, desprezada e esbofeteada. Mas de forma alguma é um trabalho machista, pois funciona como exemplo de que mesmo a mais inferiorizada das pessoas pode dar a volta por cima com trabalho, esforço e dedicação. É claro que ser bonita como Emma ajuda, afinal, do contrário ela não teria o apoio do jornalista Paul, alicerce para seu auto-conhecimento.

Nascida Ontem é uma comédia absolutamente charmosa, de ritmo delicioso e personagens muito bons. Até mesmo tem um lado histórico e questionador (com relação aos políticos, que hoje é absolutamente óbvio, é claro) que traz ainda mais qualidades positivas à obra de Cukor, diretor que sempre foi notável pelos filmes envolvendo relacionamentos humanos (seja de forma cômica ou dramática), e com este aqui havia entregue mais uma pérola para o Cinema. Seus trabalhos são absolutamente tradicionais, corretos, quase perfeitos demais. E, com relação a  Judy Holliday, se sua interpretação não ficou marcada na história do Cinema como a de Gloria Swanson, pelo menos o prêmio conquistado no Oscar serve para que pelo menos mais alguns espectadores conheçam este filme.

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