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Críticas

Cineplayers

Um título que diz tudo.

2,0

Nas entrevistas de lançamento de seu novo filme Não se Preocupe, Nada Vai Dar Certo (idem, 2009), o diretor Hugo Carvana sempre fez questão de lembrar que o título vinha de um frase dita por Armando Costa, roteirista dos seus primeiros filmes. Quando Carvana cobrava o trabalho prometido, Costa emendava esse bordão, lembrando ao amigo que, por mais que eles se esforçassem, o novo projeto de ambos já estava fadado ao fracasso. Vários anos depois, Carvana resolveu fazer um filme em torno dessa visão pessimista e fatalista da vida. A ideia parecia casar com o estilo de comédia agridoce típico do cineasta. Mas, ao contrário da premissa inicial animadora, o resultado que vemos na tela é dos mais frustrantes. Ao final da projeção, é difícil não deixarmos enxergar no título que serviu de mote para Carvana uma trise ironia, uma quase piada pronta, afinal, praticamente nada no seu filme deu certo.

A história começa nos apresentando Lalau Velasco (Gregório Duvivier). Ele é comediante. Perambula com seu show entre bares e cabarés de segunda ou terceira categoria. As plateias o adoram. Participam do espetáculo e riem das suas piadas. A principal delas envolve seu pai, Raul (Tarcísio Meira), um ator de teatro de formação, mas que há tempos se transformou num trambiqueiro de marca maior. Até onde sua lembrança recua no tempo, seu pai sempre esteve metido em alguma enrascada. A mais recente está acontecendo a alguns quilômetros dali, numa distante cidade do litoral cearense. Raul controla as apostas numa rinha de galo. Antes de o local ser fechado pela polícia, ele escapa de fininho com o dinheiro dos jogadores. Perseguido pelos credores, Raul, mais uma vez, precisa dar no pé. Antes de iniciar a fuga, ele descobre o paradeiro de seu filho, àquela altura tentando levar uma vida estável, com sua namorada (Marina Rios). Os dois vão parar num hotel em Maceió, onde Lalau tem agendado alguns shows. Enquanto Raul passa o tempo revendo velhas e conhecidas prostitutas da redondeza, Lalau conhece Flora (Flávia Alessandra), de quem recebe uma proposta de negócio para interpretar um guru indiano especialista em palestras motivacionais. Seduzido pelo dinheiro, Lalau parte para o Rio de Janeiro sem nem avisar o pai. Raul, sentindo-se traído, vai atrás do filho. A confusão está montada.

Pode parecer clichê, mas não é exagero nem demagogia dizer que Hugo Carvana está entre as figuras lendárias do cinema brasileiro. Na sua longa e festejada carreira, Carvana atuou em quase 100 filmes. Estreou como figurante na chanchada Trabalhou Bem, Genival (idem, 1957), e logo se tornou homem de confiança de vários diretores de peso do cinema-novo. Trabalhou com Ruy Guerra, em Os Fuzis (idem, 1964), com Leon Hirzmanm, em A Falecida (idem, 1965), com Gláuber Rocha, em Terra em Transe (idem, 1967), com Joaquim Pedro Andrade, em Macunaíma (idem, 1969) e com Cacá Diegues, A Grande Cidade (idem, 1970). Como diretor, estreou com Vai Trabalhar, Vagabundo (idem, 1973), em que também assumiu o papel principal. Logo deixou claro que seu tema preferido era a boemia e malandragem carioca. Vieram mais sete filmes, entre eles o elogiado Bar Esperança (idem, 1983), talvez seu filme mais bem acabado, e a continuação Vai Trabalhar, Vagabundo II - A Volta (idem, 1991). Com tantos anos de rodagem, espanta como Carvana errou a mão em Não se Preocupe, Nada Vai Dar Certo. Se lembrarmos que, numa entrevista concedida em 2003 ao site Terra, logo após o lançamento de Apolônio Brasil, Campeão da Alegria (idem, 2003), o diretor confidenciou que nunca liberou um filme se não estivesse no mínimo 60% satisfeito com o resultado final, fica a impressão de que, de lá para cá, Carvana talvez tenha reduzido esse percentual de exigência.

Em Não se Preocupe, Nada Vai Dar Certo, Carvana volta a explorar seu personagem favorito: o malandro de bom coração. Através dele, o diretor pretende prestar uma homenagem à profissão de ator, ao desejo de estar no palco, de representar, independentemente do retorno financeiro. Afinal, como diz o mentor de Lalau, papel que Carvana reservou para si próprio, a arte de atuar sempre valerá a pena “desde que se faça rir”.

A coerência temática, no entanto, não deu liga. O filme custa a começar (o convite da personagem de Flávia Alessandra surge lá pela meia hora de projeção); as situações cômicas simplesmente não tem graça (o bordão que dá título ao filme  parece tirado de seriados televisivos como Zorra Total ou A Praça é Nossa); o personagem de Lalau é irritante (a desastrosa narração em off de Duvivier contribui para essa sensação); a trama policialesca que aparece na segunda metade da narrativa se estende por muito tempo e, pior que isso, se leva muito a sério; a rápida inserção musical no meio da história, ainda que se assuma o espírito de farsa da obra, é deslocada em sem sentido (melhor seria deixar apenas o trecho do final, que serviria como uma homenagem); o acúmulo de personagens sem função na trama (a morena que vive com a personagem de Hugo Carvana e o secretário da candidata ao Senado, Carol Gomide, interpretada por Ângela Vieira), a falta de foco [o filme começa como um road-movie, no estilo Bye Bye Brasil (idem, 1979), muda para a comédia de salão, passa pelo gênero policial, e termina como musical]. Precisa mais?

Além disso, há alguns erros de continuidade, impensáveis no padrão de exigência do cinema brasileiro atual. Em determinado momento, Lalau e Raul conversam no bar do hotel. É noite. O primeiro acabara de fazer uma apresentação e o segundo reclama de ter sido novamente o tema das piadas. Raul diz para o filho que vai cair na balada. De fato, ele vai a um prostíbulo e retoma o contato com uma velha prostituta do local. Carvana contrapõe essa cena com duas sequências de Lalau, ambas ocorridas no dia seguinte, a primeira, de dia, na piscina, e a segunda, de noite, quando Flora lhe propõe o golpe da imitação. Quando Lalau resolve embarcar para o Rio de Janeiro, vemos Raul, com a mesma roupa, voltando para a casa pela manhã. Os erros da passagem do tempo são evidentes.

Os equívocos se sucedem. Mais para o final da trama, quando Raul colabora numa investigação policial, o cabelo de Tarcísio Meira embranquece repentinamente e sem qualquer motivo aparente. Durante essa mesma investigação, são inseridos alguns trechos em flashback, para melhor explicar a lógica do raciocínio de Raul. Nada contra Carvana querer dar uma de Agatha Christie. Só não precisava  ilustrar a sequência com cenas já vistas, que não trazem qualquer informação nova além daquela que já sabemos. Isso que dá pensar na cena de forma literária e não cinematográfica.

A mise-en-scène de Hugo Carvana também é pobre. Os enquadramentos limitam-se ao manjado campo/contracampo. Não há um surto de inventividade, um momento de maior brilho. Com exceção da abertura do filme (uma tomada aérea do litoral do Ceará), o restante da narrativa é composta de planos fechados, que aproximam a fita do formato televisivo. Os diálogos do experiente roteirista Paulo Halm igualmente não primam pela originalidade ou humor. As piadas do guru indiano são fracas [a composição de Duvivier, que parece se basear no Peter Sellers de Um Convidado Bem Trapalhão (The Party, 1968), colabora para a falta de graça) e, definitivamente, o cinema brasileiro não precisa importar da comédia americana piadas que mostrem personagens defecando. Outro destaque negativo, que costuma passar batido, vai para a direção de arte: qualquer telenovela consegue recriar uma delegacia mais verossímil que aquela exibida pelo filme. Talvez o único comentário positivo a ser feito na parte técnica esteja nos inventivos créditos de abertura e de encerramento da obra.

O elenco se vira nos 30. Distante da telona há mais 20 anos, Tarcísio Meira subverte sua persona de galã construída na televisão, e, na medida do possível, sai-se bem. Na segunda metade da narrativa, quando seu personagem começa a incorporar outras figuras, Tarcísio cresce e passa a ocupar mais tempo de tela. Era a hora, talvez, de o roteiro ser mais ousado, e partir para um humor mais rasgado, assumindo de vez um tom farsesco e bizarro. Mas o roteiro peca pela timidez e não lhe reserva uma cena mais marcante, e tampouco diálogos mais engraçados. Gregório Duvivier pode ser uma revelação da nova geração de atores brasileiros, mas me pareceu que, tanto na pele de Lalau, quanto na do guru, errou completamente no tom.  Os demais coadjuvantes repetem a personalidade que construíram na telinha: Ângela Vieira faz a coroa gostosona; Herson Capri, o empresário corrupto; e Flávia Alessandra, a femme fatale. Se serve de elogio, a impressão é de que, no final das contas, os atores estão se divertindo mais do que os espectadores.

É difícil ser tão severo com alguém como Hugo Carvana, que tanto fez e ainda faz pelo cinema brasileiro. Mas não há como negar o fato de que Não Se Preocupe, Nada Vai dar Certo é das maiores bolas fora exibidas no nosso circuito comercial em 2011.

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