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Críticas

Cineplayers

O imediatismo da dor.

8,5

O fim de Namorados Para Sempre (Blue Valentine, 2010) parece não ser bem um ponto final. Não que o filme fique em aberto (de modo algum), mas a incerteza do futuro é tão grande quanto deveria ser a incerteza do futuro de qualquer final de filme onde os personagens “viveram felizes para sempre”. Não existe, na vida real, nada absolutamente irrefutável, imutável, eterno. O filme de Derek Cianfrance busca, em cada segundo de sua projeção, o tom da realidade, o ritmo exato dos batimentos dos corações de dois amantes, quando se amam e quando já não há mais amor.

Porque Blue Valentine, apesar do mau título nacional e da péssima campanha publicitária que lhe foi destinada, não é um filme sobre um casal de namorados em constante harmonia. Nem são eles somente namorados, como a desarmonia é um aspecto fundamental – e predominante – na obra. E para o leitor que pensar que dizendo isso eu estou contando o que acontece no filme, acredite, não é verdade. Mas, de certo modo, é quase um serviço avisar que não se trata de uma comédia romântica ou um romancezinho permeado de música indie. Do mesmo modo que Blue Valentine não se vale de uma cara que não é sua, o leitor merece saber que o filme que verá é fiel e completamente focado a um sentimento. A dor.

Como já disseram todos os bons e maus poetas, amar é sofrer. E ao contrário do que prega a falsa utopia da sociedade, formada em bases religiosas de que o matrimônio (e supostamente o amor) deve durar para sempre, do que vende a música pop e os romances Hollywoodianos (lembro-me especificamente da narração inicial de (500) Dias com Ela [(500) Days of Summer, 2009]), o amor só é perante o momento. Os personagens do filme de Cianfrance, Cindy e Dean, só vivem seu amor durante o tempo em que aquilo é possível. Quando já não for mais adequado, pelo motivo que for, o mundo deverá sim ruir. Pelos olhos de Cindy, um sem saída emocional, uma explosão iminente; pelos atos de Dean, um desespero por perceber uma impotência diante da constatação de uma condição. Em ambos os casos, a impossibilidade de permanecerem um ao lado do outro,  por algum tempo, sem que algum ataque ocorra.

Cianfrance capta os personagens de modo emergencial, uma opção que particularmente não me agrada no que concerne aos movimentos de câmera, mas que faz sentido diante das condições em que o filme foi planejado/realizado. Por quase uma década, o diretor aguardou que os dois protagonistas estivessem “prontos” para os papéis, maduros o suficiente para suportar o turbilhão de emoções que eles estariam sujeitos ao longo das filmagens. Antes disso, os dois atores moraram juntos, na mesma casa, por um mês. Daí se criou a intimidade necessária para que diante da câmera eles realmente parecessem um casal. Do afastamento imposto pelo diretor em determinado ponto do trabalho, o estranhamento que os dois exalam em seus momentos mais críticos. Sob qualquer análise, Cianfrance buscava um realismo quase impossível na ficção, de que nenhum tipo de ensaio ou leitura textual pudesse dar conta totalmente. Sua câmera não ter um ponto fixo se casa justamente à idéia central de não se antecipar a ação, pelo menos dentro das possibilidades de “improvisação” que uma obra visceral permite.

Nesse sentido, Blue Valentine lembra muito a obra de John Cassavetes. O gênio do cinema independente era conhecido por seguir seus atores durante as cenas, tentar extrair deles o máximo de imediatismo de suas emoções, propor coisas novas que fugissem da decupagem previamente pensada. Mas, acima de qualquer referência, Blue Valentine se filia ao viés documental do próprio Cianfrance que, antes deste que é seu primeiro longa de ficção, já vinha de uma carreira significativa no documentário. Há a necessidade do realismo, da verdade incutida em cada fala, gesto, respiração, mas é em suas opções de montagem que Cianfrance elabora seu discurso narrativo.

Não existe nada de novo na estrutura de Blue Valentine. Pode-se dizer que é um filme que utiliza flashbacks constantemente, indo e vindo no tempo, como pode ser tida também como uma narrativa em dois tempos distintos, já que são igualmente importantes as duas linhas estabelecidas ao longo dele. O presente se passa em pouco mais de um dia, onde o tempo e sua passagem são mais facilmente percebidos – justamente por serem mais pesados – que no passado, onde circunstâncias pontuais recriam o início do relacionamento de Cindy e Dean. Os pontos de ligação entre um tempo e o outro são raccords variados, que vão da simplicidade do corte de uma porta que bate, à complexidade sensorial do olhar de Dean para a Cindy do passado e a imagem projetada da Cindy do presente. Entre os dois momentos, um emaranhado latente de frustração e desgaste.

Para preencher as lacunas da passagem do tempo, Derek Cianfrance não se preocupa em explicar as motivações para que a situação colérica do presente do casal se faça lógica, pois tal sentido só é possível diante da percepção do público. Como em O Céu de Suely (idem, 2006), de Karim Aïnouz, onde a personagem principal não mais pertence ao lugar onde o filme ocorre e que precisa de todo modo abandonar tudo, sem um destino específico. Assim como Karim entende que não há maneira de verbalizar o significado do não-pertencimento de sua personagem, Cianfrance compreende que basta ouvir o silêncio de seus atores para que o público compreenda que entre o passado e o presente existe tempo demais.

Mais que qualquer palavra, ou ação encenada (como os dois combates físicos que se dão no terceiro ato), Blue Valentine encontra sua força no olhar perdido de Michelle Williams, na sincera e compreensível instabilidade emocional de Ryan Gosling, na dimensão incalculável de profundidade que existe em uma colaboração tão impressionante entre um diretor e seus atores. Os desempenhos de Williams e Gosling, para além de qualquer adjetivo, assumem o posicionamento de co-autoria. Assim como Gena Rowlands nos filmes de Cassavetes, como Liv Ullman nos filmes de Ingmar Bergman. E, por mais que exista uma distância ainda grande a percorrer para se igualar a dois mestres como eles, Cianfrance já exibe no currículo uma sequência antológica, que sintetiza perfeitamente seu filme, seus personagens e, até mesmo, o tal amor. Depois de jogar a aliança fora, no ápice de uma discussão terrível, Ryan Gosling segue para procurar; apesar da mágoa profunda, Michelle Williams segue junto. Cinema pra gente grande, que não se ilude em saber que em tudo que é belo, há também muita tristeza. Principalmente em obras de arte.

Comentários (4)

Bruno Kühl | segunda-feira, 12 de Setembro de 2011 - 13:55

Que linda! 😢

Renata Borges | sábado, 25 de Fevereiro de 2012 - 15:37

Muito boa a crítica!!

Paula Lucatelli | terça-feira, 13 de Janeiro de 2015 - 01:02

Minha análise: https://identidadecinefila.wordpress.com/2014/10/20/analise-profunda-namorados-para-sempre/

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