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Críticas

Cineplayers

Um magistral estudo de personagem e uma história riquíssima, repleta de possíveis leituras.

9,0

É inegável que Cinema é entretenimento. Desopilar a cabeça e fugir dos problemas da vida real, perdendo-se em imagens e sons, com guloseimas e boa companhia, continua sendo um programa praticamente perfeito. Mas a arte tem uma força muito maior e o Cinema, com toda a sua riqueza de possibilidades, apenas atinge a plenitude quando é utilizado para fazer a diferença. Vez ou outra, surgem filmes capazes disso. São obras que, durante duas horas, não somente entretêm, como também podem mudar vidas e trazer novos significados e perspectivas a uma existência. Na Natureza Selvagem é uma delas.

Baseado em uma história real a partir do livro de Jon Krakauer, o filme tem início com o jovem Christopher McCandless em meio à vida selvagem no Alasca. Através de flashbacks, a trama revela como ele chegou até lá. Após se formar, aos vinte e três anos, com uma vida repleta de possibilidades pela frente, McCandless decide doar todos seus vinte e quatro mil dólares de economia para instituições de caridade e partir em uma jornada rumo ao desconhecido. Pegando caronas e sobrevivendo através de bicos, o jovem empreende uma viagem até o Alasca, conhecendo e estabelecendo laços com diversas pessoas no meio do caminho.

Exibindo o mesmo fascínio pela psicologia de seus personagens que demonstrou em seus trabalhos anteriores atrás das câmeras, o ator/diretor Sean Penn constrói um filme belíssimo e inspirador, ainda que pincelado com tons de pura melancolia. Ele próprio um contestador do chamado “sistema”, Penn encontra em Na Natureza Selvagem o material definitivo para provar toda a sua capacidade como cineasta, em um retrato profundo não somente de uma pessoa fascinante, mas de um mundo que pode ser, ao mesmo tempo, maravilhoso e cruel, simples e complexo.

Fica clara a identificação de Penn com McCandless, ainda que o cineasta consiga evitar uma visão edificante do personagem. O idealismo está presente, mas unicamente na visão de mundo de McCandless, que parte em busca de algo que nem ele mesmo sabe o que é, porém tem a certeza de que só irá encontrar longe da sociedade viciada e ilusória na qual vivemos. O protagonista sabe que apenas longe da busca incessante pelo sucesso, do consumismo desenfreado e da vida guiada pelas aparências, somente com o aprendizado de novas experiências e um contato mais íntimo com a natureza e o lado mais primitivo do ser humano, poderá encontrar a sua paz.

Este é o verdadeiro apelo de Na Natureza Selvagem junto ao público. Quem nunca pensou em largar toda a correria do dia-a-dia, o stress das contas a pagar, quebrar o despertador e viver de maneira simples e sem preocupações? Poucos, no entanto, têm a coragem de fazê-lo. Chris McCandless foi um deles, e é impossível não sentir admiração e certa identificação com a desilusão do personagem e sua jornada em busca de algo maior e mais significativo para a sua vida. Acompanhá-lo nesta viagem de autoconhecimento é uma verdadeira catarse.

Ainda que este seja o ponto de partida, o enredo jamais simplifica McCandless como um homem que descobriu o segredo da vida. Na verdade, o roteiro (escrito pelo próprio Penn) constrói o personagem com brilhante riqueza de detalhes, com claro cuidado de não apresentar o jovem como dono da verdade. McCandless é corajoso, irrequieto, culto, inteligente e certamente possui percepções muito bem definidas sobre o mundo que o cerca. Ao mesmo tempo, porém, é irresponsável e sonhador demais, partindo despreparado rumo ao desconhecido apoiando-se na mera suposição de que a natureza vai lhe dar o que precisa – e as opiniões que coleta no trajeto sobre sua viagem apresentam bem tal contraponto.

Enquanto isso, o descaso com a família chega a ser cruel e a certo ponto inaceitável. Por mais que tenha crescido com problemas em casa, devido a um instável relacionamento entre seus pais, nada justifica ficar dois anos fora de casa sem dar ao menos um sinal de vida. É aí, também, que Na Natureza Selvagem ganha mais uma dimensão, uma nova camada escondida sob a superfície da viagem de McCandless. Sua partida não é unicamente a decisão de conhecer a vida em sua essência, mas também uma resposta, uma forma de vingança contra os pais pela infância e adolescência que eles proporcionaram. No coração de Na Natureza de Selvagem, em meio ao duelo entre homem e natureza, entre a burocrática vida urbana e a imprevisível existência selvagem, entre consumismo e liberdade, está a história de uma família problemática, cujas feridas moldaram de maneira indelével a personalidade de um jovem com futuro promissor.

Por essa razão, os laços estabelecidos por McCandless ao longo de sua jornada adquirem maior relevância e significado do que os de um mero viajante que conhece pessoas em cada canto. Quando pega carona com um casal de hippies, o jovem encontra neles os pais que nunca teve, também com vida sofrida, mas capazes de oferecer carinho e amor ao confuso garoto. Enquanto isso, McCandless vê na figura de Wayne um amigo com coração livre igual ao seu, em quem pode confiar e se abrir como nunca antes. E, claro, é no idoso Ron Franz que o imberbe viajante vê a oportunidade de fazer a diferença na vida de alguém, apresentando uma nova visão da vida ao simpático velhinho que, em contrapartida, passa bons ensinamentos ao garoto.

Todos estes personagens secundários deixam forte influência não apenas no protagonista, mas também no espectador, graças, além da construção do roteiro, ao impecável elenco. Catherine Kenner e Brian Dierker, como Jan e Rainey, conseguem passar sem dificuldades as condições de um casal com passado difícil, que já deixou o sonho para trás e sofreu com a dificuldade do mundo como ele é. Enquanto isso, Vince Vaughn nem de perto lembra o exagerado comediante da trupe de Owen Wilson e Ben Stiller, em uma interpretação contida e eficaz. Já o veterano Hal Holbrook (indicado ao Oscar) está comovente no papel do idoso que encontra em McCandless a chama de vida que deixou apagar. Seu momento no carro, quando faz um pedido ao jovem, é de quebrar o coração. A talentosa Jena Malone tem pouco espaço, aparecendo mais graças à narração, e Kristen Stewart está adorável como o único interesse amoroso do protagonista. Fechando o elenco, Marcia Gay Harden e William Hurt estão eficazes como os pais de Chris – Hurt tem ainda uma belíssima cena no meio de uma rua.

No entanto, a grande atuação de Na Natureza Selvagem cabe mesmo a Emile Hirsch. De forma surpreendente – uma vez que até então o ator demonstrara apenas boa presença, não talento –, Hirsch abraça o papel de Chris McCandless com unhas e dentes, em louvável dedicação. Mais do que a impressionante transformação física, porém, é a composição sensível do personagem que realmente chama a atenção. McCandless poderia ser nada mais do que um egoísta sem coração, que abandonou os pais pensando apenas em si mesmo. No entanto, na pele de Hirsch, o personagem é um jovem perdido e sem rumo, empolgado com suas idéias e determinado nos objetivos, mas com uma alma repleta de cicatrizes e com dificuldades de se abrir com quem quer que seja. Uma interpretação magnética, forte, capaz de levar nas costas um filme difícil como Na Natureza Selvagem.

Claro que boa parte dos méritos do elenco deve-se à direção de Sean Penn, ele próprio um dos melhores atores norte-americanos. Com muita segurança e paixão pela história, Penn adota uma narrativa desacelerada, contemplativa, com longas cenas em câmera lenta que capturam de maneira irrepreensivelmente bela momentos de comunhão com a natureza. A calma com a qual desenvolve a história joga o foco para a psicologia do personagem, que Penn aborda com uma mistura de reverência e repreensão; ao mesmo tempo em que parece admirar a coragem e a visão de McCandless, condena-o pela falta de preparo com a qual iniciou uma viagem dessas.

Sem grandes afetações, o cineasta constrói momentos emocionantes única e simplesmente pela forte identificação do público com os personagens e os relacionamentos, como na já citada conversa de McCandless e Franz no carro. A narração, feita por Jena Malone como a irmã, com trechos de escritos do próprio McCandless e outras citações de seus atores favoritos, dá o tom perfeito de lirismo à trama, além de pontuar o ritmo da narrativa. Somando-se a isso, Eddie Vedder assume a trilha sonora que se faz presente em boa parte do filme, igualmente reforçando as questões discutidas por Penn.

Além do mais, a sensibilidade do texto e da direção de Penn aparecem nos diversos simbolismos existentes em Na Natureza Selvagem, como na cena em que McCandless convida Franz a subir em uma montanha para enxergar novos horizontes ou na ironia de o protagonista, em meio ao Alasca, encontrar seu “lar” em um ônibus abandonado, elemento estritamente relacionado às grandes cidades. Aliás, a nota melancólica com a qual o filme se encerra demonstra que o idealismo de McCandless é anacrônico, não encontrando mais lugar neste mundo, e a iluminação final do personagem, que partiu solitário em busca de si mesmo para descobrir que a felicidade só existe quando compartilhada, dá um toque trágico à fascinante jornada – e o plano final é nada menos que espetacular neste sentido.

Mais do que um libelo contra a sociedade moderna, Na Natureza Selvagem é um magistral estudo de personagem e uma história riquíssima, repleta de possíveis leituras. É um filme inspirador, que abre os olhos e enche o coração, capaz de plantar novas idéias e conceitos na mente do espectador. Acima de tudo, é uma experiência hipnotizante, que mergulha o espectador na mente de um espírito único como o de Chris McCandless. Um verdadeiro rebelde, não um rebelde contestador, mas um rebelde pacífico, que apenas queria encontrar seu lugar no mundo. Um sonho com o qual todos podemos nos identificar.

“Mais que amor, dinheiro, fé, fama, justiça, dê-me verdade.”
Thoreau 

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