Lucrecia Martel nos põe perdidos dentro da cabeça de Verô.
(Cobertura do Festival do Rio 2008)
Sem querer prever qualquer coisa, mas haverá na produção cinematográfica atual uma tendência – como me traduziu um amigo - às ações internas, em desobediência ao conceito de ação naturalizado por Hollywood? Seguindo num ritmo naturalmente lento, nenhuma resposta em A Mulher Sem Cabeça nos é dada de graça: é preciso olhos-de-ver para enxergar no rosto e nos gestos de Verô (María Onetto) o que realmente se passa neste filme.
Muitas foram as críticas negativas que o filme recebeu justamente sobre este aspecto da ação, alguns reiterando que parece que nada se passa na história de Lucrecia Martel, que além de diretora foi a responsável por seu roteiro. Em comparação com outro filme que, seguindo a mesma linha, vi quase na seqüência, Liverpool de Lisandro Alonso, a sensibilidade me apontou a diferença surda que fez a balança pender mais para o lado do filme de Martel: a mão da diretora nos conduz com muito mais precisão pelos caminhos que devemos percorrer no interior da cabeça ausente da protagonista - coisa sobre a qual Alonso aparenta ter sido mais displicente – e é assim que se pode empregar significado a cada silêncio e a cada impressão de que nada se passa com a perturbada Verô.
O filme começa na fatídica estrada que desencaminhará a vida da protagonista, com crianças brincando de correr pelo canal atrás de um cachorrinho. Quando o acidente acontece, para ela o que se inicia é um profundo mistério. Pensando bem sobre a passagem do filme que segue logo após o acidente, teria Lucrecia utilizando o expediente lynchiano do sonho para responder ao enigma que parece respondido ao final?
Bonitas mesmo são as seqüencias que enquadram o rosto de María Onetto em primeiro plano, enquanto vemos ao fundo dois ou três personagens desenrolando o que por convenção seria a ação principal. É assim que nos tornamos cúmplice das olhadelas de rabo de olho, da confusão que vai criando sob si mesma a mulher sem cabeça. O roteiro também, e por mais que isso não seja claro, não deixa espaços de respiro para Verô, que tira radiografias do crânio e muda a cor dos cabelos na busca por paz de espírito.
Uma coisa que tem despertado meu interesse nos filmes é o uso do corpo, que se comparado a filmes anglo-saxônicos, europeus ou mesmo asiáticos, tem entre os cineastas latinos o uso mais explícito. A mecânica do toque na história de A Mulher Sem Cabeça aparenta vários significados contextuais, mas em vários deles transparece o mesmo valor: a junção de Verô com a realidade palpável se dá através das muitas pessoas que a cercam, entre irmãs, sobrinhos, tias, marido, empregados e até um primo. Todos aparentam querer tirar um pedaço da personagem para carregar no bolso e o que fica nítido, no entanto, é que ela poderia ser repartida em muitas partes que ainda assim sua cabeça permaneceria confusamente intacta.
Delicado, enigmático e bem dirigido são bons adjetivos para descrever este filme.
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