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Críticas

Cineplayers

Recente trabalho do célebre diretor coreano é ao mesmo tempo um thriller enervante e uma tragicomédia bizarra.

8,0

O novo filme do coreano Joon-ho Bong (Memórias de um Assassino, O Hospedeiro) parte de uma premissa deveras conhecida, a do deficiente mental ridicularizado e mais tarde apontado como principal suspeito do assassinato de uma jovem estudante cujo corpo é encontrado num local abandonado próximo a sua residência. A trama já serviu de lugar-comum para centenas de outros filmes, porém o cineasta retira todo o peso que a história pode ter de clichês, de forma que já não os enxergamos como tal. O que também pode resultar numa sensação de estranheza por parte de alguns espectadores desacostumados ao novo cinema asiático (do qual o cineasta é um dos principais expoentes), e uma dificuldade em se identificar e envolver com o modo com que o material é trabalhado e transposto para a tela, até porque o interesse do diretor não é o recurso fácil e óbvio de querer cativar o público com o sofrimento de uma mãe desesperada, mas sim de percorrer e explorar os labirintos tortuosos da loucura humana.

Mother - A Busca da Verdade é um filme claramente partido em dois, cuja divisão servirá para acentuar seu descompasso e o seu desequilíbrio, com os seus primeiros quarenta minutos girando em órbita do filho, Do-joon, que está próximo dos trinta anos, mas ainda imaturo e desequilibrado, tímido demais para estabelecer convívio social fora do cordão umbilical que o liga à solidão de sua mãe, o que o fecha em um cerco domiciliar que o protege e o sufoca ao mesmo tempo e o atola em sua própria ingenuidade. Distante do estereótipo de deficientes mentais com os quais nos acostumamos a ver no cinema, Do-joon é mais uma figura deslocada e marginalizada que não é aceita longe do seio familiar da saia da própria mãe, um rapaz fragilizado que se habituou à involuntária condição de bobo da corte no reino de miséria e ignorância da cidadezinha de vida pacata onde transcorre a história, e as índoles mesquinhas de seus habitantes (mas com uma visão nada cínica ou miserabilista a respeito da condição humana). É a condição de desamparo que faz com que filho e mãe só tenham um ao outro, e que juntos se sintam confortáveis como se fossem um único ser. Há ainda o aspecto da sexualidade latente de um jovem homem cujos impulsos eróticos desconhece ou não desabrocharam completamente. Um de seus raros amigos o aborda e comenta a respeito de garotas, o que desperta a sua libido e o interesse na bela Moon Ah-Jung.

Essa primeira parte reflete muito do estado psicológico do protagonista, que contamina a narrativa com toda a sua caótica confusão mental e os desvios de sua percepção trôpega do mundo, o que torna ambígua a sua ligação com o assassinato de Moon Ah-Jung, o primeiro crime dessa natureza ocorrido em muito tempo na pequena localidade, com o corpo da garota encontrado no alto do telhado do prédio vazio, para que todos a pudessem ver, como se estivesse em exibição ou dependurada em um varal. O indício de uma bola de golfe (esporte praticado pelo rapaz) encontrada ao lado do cadáver, e a falta de vontade da policia em se aprofundar no caso e a decisão de se restringirem às evidências mais próximas são o suficiente para Do-joon ser preso, o que o leva a ele próprio assinar uma declaração de culpa, o que somada à displicência do seu advogado de defesa fazem da condenação do rapaz uma possibilidade que se converte no pesadelo e calvário de sua mãe, Hye-ja.

É quando Mother sofre uma cisão narrativa e o filme começa a acompanhar o périplo de uma mãe que encarna a disposição de ir até o fim nessa busca pelo esclarecimento da verdade, e que investiga por conta própria e se infiltra em ruelas, becos escuros e redutos da marginalidade em geral. Primeiro, seguindo o rastro do amigo do filho, Jin-tae, de caráter duvidoso, e depois, tentando encontrar o celular perdido da vítima, cruzando então com outros personagens que também tinham ligação com a garota assassinada. Joon-ho Bong não se refere em seu trabalho à luta do indivíduo contra o sistema, mas sim de pura e simplesmente narrar uma história de obstinação de uma anti-heroína agoniada diante de um mundo duro e insensível, e que logo começará a dar passos muito mais perturbadores e difíceis de enquadrar. Para todos os efeitos da experiência racional do mundo, este mergulho doentio ultrapassa as barreiras da normalidade, e sua busca obcecada pela inocência do filho se expande para além do filme.

O andamento de Mother não se constrói de modo absolutamente harmônico e uniforme, mas de maneira metodicamente abrupta e por vezes dissonante, com alguns excessos de melodrama, a alternância de tons e a sua condição de thriller de investigação, fazendo com que o verdadeiro interesse do cineasta seja em acompanhar todo um percurso que se desenvolve de forma pouco previsível a partir de certas coordenadas, numa observação minuciosa desse trajeto. E com doses de sangue e violência, discretas e realistas, ao mesmo tempo em que nos faz acreditar que todo oriental é craque em uma voadora. Há também o humor desconcertante que surge em meio ao drama (e vice-versa), não apenas com uma comicidade óbvia e natural pela condição de mentalmente problemático e atrapalhado do protagonista masculino, mas especialmente nas ocasiões em que o filme assume ares de tragicomédia, como na cena em que a mãe visita o velório da vítima, e os familiares se indignam com sua presença naquela cerimônia, com o conflito e a reação dos personagens nos fazendo rir e ficar tensos ao mesmo tempo. É a inclinação particular e bem específica que Joon-ho Bong dá a suas narrativas e à maneira de filmá-las, sublinhando o que existe de patético em toda tragédia e melodrama, uma forma um pouco estranha e pujante de misturar densidade psicológica com caricatura vulgar.

Juntar-se com a personagem-título, como o filme nos permite vivenciar, passa a ser entrar de cabeça na loucura e admitir que, depois de tudo que testemunhamos na narrativa, já não é possível voltar atrás, prosseguir da mesma forma, no tom rotineiro e sem máculas presente no começo da película. Ao final, diante de uma figura-chave inserida na história para elucidar o segredo da trama, descobrimos que uma verdadeira mãe chora não apenas pelo seu, mas por todos os filhos do mundo.

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