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Críticas

Cineplayers

Uma crítica ao desconhecido e subestimado A Morte e a Donzela, de Polanski.

7,5

O que se passa na cabeça de um ser humano no momento em que, anos depois do sofrimento de certo trauma, reencontra aquele que imagina ter sido o grande algoz de sua vida? Seria ele capaz de utilizar a razão para medir suas atitudes, ou passaria a agir pura e simplesmente através de seu instinto, visando nada mais além da vingança? E qual seria a maneira mais eficaz de praticar essa vingança? Fazendo com que o referido algoz sofresse da mesma maneira que ele? Ou então buscando proporcionar-lhe o mais alto grau de humilhação já sentido, seja ela física ou psicológica? Mas, e se o tal ser humano ainda não estivesse certo de que o homem encontrado é a mesma pessoa a qual ele imagina que seja? Sua sanidade mental estaria tão debilitada a ponto de não considerar a possibilidade de que estaria cometendo uma injustiça? Ou o desejo de vingança lhe cegaria por completo, fazendo com que negasse toda e qualquer dúvida razoável? 

Indagações como estas servem de mote central para uma das mais interessantes obras de suspense do mestre polonês Roman Polanski (Chinatown), o desconhecido e subestimado A Morte e a Donzela. Passado em um país qualquer da América Central, o filme narra a história de Pauline Escobar, uma mulher, vivida por Sigourney Weaver (Alien – O Oitavo Passageiro), que sofrera uma intensa tortura durante um período ditatorial do país. O fato acabara se transformando em um trauma, fazendo com que ela praticamente se desligasse do mundo. Acabara casando com um importante advogado (interpretado por Stuart Wilson, de A Época da Inocência), com o qual mantinha relações desde os tempos de juventude, e se mudara para uma casa situada no topo de uma colina, onde se encontrava em auto-exclusão da sociedade. Não desejava ter ninguém por perto, nem mesmo permitia que alguém soubesse de sua existência.

Certa noite, o carro de seu marido quebra em meio a uma rodovia, e este acaba sendo trazido até a casa por um indivíduo que estava passando pelo local. Na mesma e chuvosa noite, tarde da madrugada, o tal indivíduo, um médico interpretado por Ben Kingsley, acaba voltando para devolver-lhes o pneu do carro, que havia sido esquecido dentro de seu automóvel. Ao ouvir a voz do médico, Pauline reconhece-a e subitamente passa a acreditar que o mesmo tivera sido responsável pela tortura que sofrera no passado. Este é o estopim de um intenso jogo psicológico, que aflora a partir do momento em que Pauline deseja fazer justiça com as próprias mãos, rapta o homem, amarra-o e passa a proferir-lhe ameaças enquanto espera que o mesmo confesse ter sido realmente o responsável pela tortura. 

Adaptada da peça teatral do chileno Ariel Dorfman, essa obra de Polanski pode ser vista tanto quanto um suspense psicológico quanto um drama, sem que se perca a eficiência em nenhum dos pontos de vista. É um filme que abusa da composição e densidade psicológica de seus personagens (lembrando que o referido “abuso” não representa um defeito da obra, já que o mesmo lhe confere tensão redobrada), alongando, em certos momentos, a tensão dos diálogos até o limite máximo do suportável, em especial por manter acesa a dúvida que permeia todos (quando digo todos, digo os três, já que o supracitado trio de personagens são os únicos existentes) os protagonistas da história: afinal, o médico é ou não é a pessoa a qual Pauline se refere? 

É a partir dessa dúvida que o diretor constrói os maiores méritos da obra. Relatando de forma intensa e extremamente imparcial o conflito armado em cima da situação, Polanski jamais permite que possamos compreender ou até mesmo interpretar de forma errônea as atitudes de um ou outro personagem, impedindo-nos também de formarmos uma opinião acerca de qual dos lados está com a razão. Ou seja, ao mesmo tempo em que compreendemos e nos comovemos com o traumático drama passado por Pauline, também ficamos com um sentimento de pena sobre a situação vivida atualmente pelo médico, já que em nenhum momento da narrativa Polanski tenta manipular o espectador a escolher um dos lados do conflito. É impossível de adivinharmos qual das partes é a real injustiçada: existem tantas probabilidades de Pauline estar com a razão quanto de não estar, e essa ambigüidade é de suma importância para o funcionamento da obra. 

Com isso, o diretor acaba construindo uma trama de vingança atirada em meio a uma suposta inversão de papéis: se antes Pauline havia sido torturada, agora passa a utilizar-se dos mesmos métodos contra a pessoa que supostamente lhe impôs tal situação. De forma acertada, Polanski omite nas entrelinhas as verdadeiras ocorrências, trabalhando durante toda a duração do filme apenas com as suposições, não permitindo que o espectador saiba, em momento algum, algo que os protagonistas da trama não saibam. É como se a câmera fosse uma quarta integrante da situação, absorvendo apenas as informações que são colocadas em jogo durante o conflito (um bom e clássico exemplo: ele não introduz à narrativa qualquer flash-back que explique as motivações de Pauline, trabalhando apenas com as informações orais relatadas pela moça durante seu embate psicológico com o médico – mais um detalhe que demonstra a imparcialidade da narrativa). 

Todos estes detalhes são desenvolvidos com inteligência pelo roteiro, e acabam extraindo dos atores atuações intensas e bastante seguras: enquanto Weaver consegue imprimir em sua Pauline uma carga emocional fortíssima, referente ao trauma vivido em tempos passados, Kingsley impressiona pela exatidão de sua desenvoltura cênica, jamais deixando de nos transmitir a sensação de surpresa sentida por seu personagem diante de tal situação – mesmo que, com isso, não deixe de passar ao espectador a sensação de que existam fortes chances de ser mesmo o culpado (principalmente por alguns detalhes soltos em meio à trama, como, por exemplo, as citações a frases de Nietzsche e a fita K7 da música A Morte e a Donzela, de Schubert). Enquanto isso, Stuart Wilson não compromete com sua personagem que, embora esteja alheia à situação, participa com veemência de todo o desenrolar da história.

Apesar de todos estes acertos, A Morte e a Donzela também possui alguns pequenos defeitos que, se evitados, poderiam transformá-lo em um filme muito mais lembrado e referenciado na carreira do diretor – embora eu acredite que nem seriam necessários para que isso acontecesse, já que o filme é ótimo mesmo assim. Um destes fatores, para mim, é a própria direção de Roman Polanski. Claro que ela está longe de ser um desastre (afinal, o diretor só conseguira tal façanha no péssimo Piratas, onde, convenhamos, tudo deu errado), pois consegue conduzir a trama com segurança e, como já disse anteriormente, imparcialidade imprescindíveis e admiráveis. Porém, a falta de uma composição de planos mais complexa e melhor desenvolvida é sentida ao longo de toda a duração da obra, e, embora em uma ou outra seqüência o diretor demonstre um pouco de seu belíssimo trabalho de composição cênica de filmes como O Bebê de Rosemary (sua obra-prima) e O Pianista, sua câmera é bastante discreta durante todo o desenvolvimento do filme. 

Além disso, acredito que esta composição estética mais acentuada não seria apenas um atrativo visual à obra, já que serviria também para conferir maior ritmo às seqüências, que se passam durante toda a totalidade da obra apenas em um mesmo lugar (com exceção de seus últimos minutos). O cenário único é um atrativo excepcional ao cinema (penso eu, claro), principalmente quando utilizado juntamente a um trabalho de câmera inteligente e ousado (vide as obras-primas Janela Indiscreta e Doze Homens e uma Sentença, respectivamente de Alfred Hitchcock e Sidney Lumet – cada uma a seu modo). Ademais, a obra também demonstra uma pequena carência daquela ousadia habitualmente encontrada na carreira de Polanski, aparentando, em certos momentos, um sensível grau de ordinariedade – algo que jamais deveria ser análogo a um filme do diretor. 

Mas, apesar destes pequenos defeitos, em geral proporcionados por pequenas escolhas feitas pelos seus realizadores, A Morte e a Donzela é um filme interessantíssimo, que promove um embate psicológico tenso e extremamente dramático, acentuado ainda mais pela notável ambigüidade imprimida a seus personagens – e também às suas situações. Uma fita esquecida em meio aos grandes sucessos da carreira de Roman Polanski, que acredito ser um dos maiores acertos da boa filmografia do diretor. Um trabalho tão competente quanto subestimado, que merece ser conferido tanto pelos adoradores da carreira de Polanski quanto pelos adoradores do gênero suspense, já que são poucas as obras atuais do gênero que conseguem provocar tensão a partir dos conflitos psicológicos de suas personagens sem abusar para resoluções fáceis e mastigadas de maneira infantil e vexatória.

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