Ao assistir A Morte do Demônio (1981) me remeti quase que imediatamente a uma crítica recentemente publicada aqui no Cine Players a qual me permito fazer referência agora. Geo Euzebio, ao falar do mais novo filme de José Mojica Marins, Encarnação do Demônio (2008), enfatizou exatamente a persistência do cineasta e sua gratificação ao ver seu projeto divulgado e assistido por aqueles que, como ele, são entusiastas do cinema e valorizam o sacrifício de uma obra feita com dedicação que tem como simples mote querer mostrar um universo apreciado pelo diretor. Para além das curiosas relações mais diretas entre os dois filmes, como a coincidência do gênero e a semelhança entre os títulos, o que realmente os une é esse sentimento que move os pequenos produtores e aspirantes a cineastas a darem o sangue (no sentido literal, algo também abundante nas duas películas) para mostrar um trabalho que tanto lhes dá prazer.
Os anos passaram e diferentemente do ícone nacional Zé do Caixão, Sam Raimi, realizador de A Morte do Demônio, foi incorporado ao mundo das produções milionárias principalmente depois de se tornar responsável pela declinante franquia do Homem-Aranha. Mas o que interessa é que um dia Sam Raimi foi também um jovem buscando destaque numa indústria altamente competitiva e, sem querer forçar a barra, mas mais uma vez plagiando minha colega Geo, “quase sempre excludente”. E como é próprio dos sonhos de garoto e da vontade de exibir o que gosta ele foi se mostrar justamente através de uma brincadeira entre amigos.
Aos 18 anos, Sam Raimi com a ajuda de seu colega Bruce Campbell, que interpreta o herói Ash no filme, conseguiu levantar um orçamento de 375 mil dólares para fazer a filmagem de seu roteiro desenvolvido a partir das invencionices dos dois companheiros. Lidando com a dureza de conseguir produzir um filme de proporções maiores do que os curtas que fazia com sua câmera caseira, o diretor só viu seu trabalho concluído depois de 4 anos, entre abandonos de parte da produção e dificuldades vindas da própria inexperiência. Ao seu lado, entretanto, ele tinha um modelo que dispensava maiores exigências. Dado seu nível de amadorismo e baixa verba ele estava inserido na seleta categoria de filmes B, geralmente ligados ao terror e a ficção científica, gêneros que usualmente necessitam de efeitos mais aprimorados para serem considerados sérios ou de padrão “A”. Essa é a grande vantagem desse tipo de produção, não há o compromisso com o grande público nem outras pretensões, a tosquidão em si já é parte da atração e até os velhos clichês são ignorados. Na verdade tudo é desculpa para ver quais as formas mais doentias de mostrar sangue jorrando na tela.
Assim, a premissa chega até a ser esquecida. Cinco amigos saem de férias para as montanhas e alugam uma pequena cabana para passar os dias. Eles começam a ser perturbados por forças ocultas que tomam seus corpos depois de encontrarem no porão o Livro dos Mortos, ou Necromicon, acompanhado de uma fita gravada por um arqueólogo que aparentemente achou o artefato. Pronto, está aí a justificativa para ver partes de corpos decepados e muitas tripas. E essas não são tripas quaisquer, são tripas feitas com creme de milho ou qualquer outra coisa que o valha. Essa é justamente a graça de tudo. E é exatamente a graça que move o filme uma vez que não há grandes expectativas. Com interpretações canastronas na ala masculina e mocinhas ingênuas excessivamente histéricas do outro lado (chega a ser constrangedor o momento em que uma das garotas grita segurando os cabelos: “Por que seus olhos estão tão estranhos?”, sendo que sua amiga está completamente verde e com a pele podre), o que realmente importa é quem vai sobrar para lidar com todos os outros amigos possuídos.
Nesse momento é que é interessante notar em que ponto o filme deixa de ser visto apenas como uma produção “B” e se torna um proclamado clássico cult, o famigerado “gênero” que serve de justificativa para o espectador que diz preferir uma obra “diferenciada”, underground, ou mais “cabeça”. Independente de como ele se alçou a esse status, o fato é que Sam Raimi conseguiu criar momentos que podem ser inclusos dentre os mais inventivos do terror e que inclusive mostravam algum apuro técnico. Aviso que se ainda não viu o filme, aconselho pular o próximo parágrafo em que vou comentar algumas dessas cenas, o que pode estragar eventuais boas surpresas.
Talvez o mais clássico exemplo seja quando Cheryl, uma das garotas, foge pela floresta e é estuprada pelas árvores. Sem precisar de maiores recursos, apenas usando galhos e cipós, o diretor criou uma das situações mais icônicas do filme. Outro momento particularmente notável ocorre quando Ash está no porão e todo ambiente começa a suar sangue, desde os tijolos até as tomadas e lâmpadas fazendo inclusive com que um projetor amplifique manchas de sangue na parede. Vale mencionar também o trabalho em stop-motion realizado na seqüência final em que os zumbis estão sucumbindo ao apodrecimento e todos seus dejetos estão sendo expelidos em Ash. Enfim, há ainda outros como a luta solitária entre Ash e sua namorada Linda que termina decapitada por uma pá.
Levando em conta tudo que já foi dito até aqui não vale nem falar de outros elementos, como a maquiagem, altamente inconstante com ferimentos mudando o tempo todo de lugar, ou a fotografia, mas que são aspectos que unidos no contexto tosco da obra ajudaram a compor seu culto. Faço só uma pequena ressalva à interpretação de Betsy Baker, como Linda, que mostrou uma das possessões mais perturbadoras que eu já vi, não apenas no sentido incômodo da palavra, parecendo completamente alucinada com uma risada perturbadora que até agora ecoa em minha cabeça e um sorriso depravadamente infantil.
Falando tanto de um filme tão simplório e primário pareço estar aqui fazendo um discurso vazio. Mas quando vemos certas obras tão pretensamente elaboradas às vezes esquecemos esse lado mais pueril do cinema, geralmente reavivado em um outro contexto por diretores que fazem de seus ofícios uma diversão, a exemplo de Tarantino e Robert Rodriguez, em produções como Kill Bill, Planeta Terror e À Prova de Morte. Ah, sim, e é bom também não nos esquecermos do nosso querido José “do Caixão” Mojica Marins. Eu que não quero uma “praga do dia” pra cima de mim.
Clássico!!! Obra genial de Raimi!!! Divertido ao extremo.