A dramaturgia de Cassavetes, fluida e solta, é impossível de ser filmada de outra maneira: a imagem granulada, a luz pontual e estourada, os travellings e panorâmicas montadas de forma visceral, os closes impactantes que captam cada gesto e cada hesitação de seus atores, construíram uma assinatura única, que foi referência de um sem número de cineastas norte-americanos que surgiram no final da década de sessenta.
Ainda hoje, a figura de Cassavetes é única para o cinema de seu país – já fazendo um filme improvisado e livre das amarras formais e dramatúrgicas do classicismo no final da década de 50, Sombras (Shadows, 1959), praticamente colado à nouvelle vague, com inovações muito parecidas (unidade dramática dissolvida, o tempo imperando sobre a ação, locações verdadeiras, câmera na mão). Foi apenas o início da carreira de um legítimo “maldito” do cinema, que para realizar seus projetos fez de tudo: atuou em filmes de estúdio, se auto-distribuiu, roubou eletricidade e hipotecou a própria casa.
E essa é, basicamente, a história de Cosmo Vittelli, dono de uma boate de strip-tease interpretado por Ben Gazzara, cujo vício em jogatina acaba deixando-o em maus lençóis com a máfia, que o encarrega de executar um agente de apostas chinês para quitar sua dívida monstruosa. E Cosmo, é claro, é obstinado em manter o clube de pé de qualquer jeito. Não é difícil reconhecer o terreno cassavetiano - a vida explode na tela quando a câmera revela seus personagens através da luz: efêmera, intensa e nervosa, onde os planos-sequência imperam em clima errático e urgente e um personagem disfuncional sempre oprimido por algo muito maior que mal sabe explicar ou dimensionar.
É nesse anacronismo que o filme encontra matéria-prima para entrar com propriedade não só no submundo, mas no terrível cotidiano de seus personagens. E não apenas os momentos que fazem a história andar, longe disso: Cassavetes lota o filme com momentos introspectivos fundamentais à construção atmosférica. Tendência típica das correntes modernas do cinema: construir a história na inação, reduzir a um mínimo possível a sequência de eventos e focar em rostos, expressões e detalhes.
Cosmo desce ao inferno literalmente, com as cores berrantes e agressivas do strip-club que gerencia - cada vez mais predominantes na atmosfera do filme, junto com a movimentação intensa de câmera e cortes bruscos; fica clara que antes de história per se, A Morte de um Bookmaker Chinês é a exposição do típico personagem do cinema independente setentista; a atenção fica mesmo para o que transcende narrativa e o típico storytelling; fica na criação, frente ao quadro, na busca pelo inusitado, em certa dissolução, no modo que tudo é filmado, entre ficção e registro. O olho, de início estranhado, tende a progressivamente a acostumar com a sensação de tempo realista e dilatado. A mise-èn-scene de Cassavetes não é fetichista, mas desnudadora, impactante. Não há baile de máscaras quando as mesmas são quebradas.
Apesar de que ainda realizaria pelo menos dois filmes dignos de nota após este, Noite de Estréia (Opening Night, 1977) e Amantes (Love Streams, 1984), A Morte de um Bookmaker Chinês é, muito por conta de uma de suas grandes cenas ao final, um testamento de Cassavetes. Ben Gazzara, interpretando e defendendo Cosmo, fala sobre sua profissão com orgulho e paixão. Com o trabalho de câmera sempre inquieto e as atuações naturalistas fazem com que a profissão de fé de um radical outsider dificilmente pareça discursada, tentando explicar de forma didática uma moral à parte: mas antes há a vivência, a forma intimista que arremessa o espectador, a exposição desavergonhada da intensidade daqueles protagonistas.
O método de atuação Cassavetes, que se distanciava do “método” do Actors Studio ao incentivar não o profundo trabalho e pesquisa, mas incentivar ao máximo o improviso, a espontaneidade, a interação com os outros e não apenas a profunda pesquisa íntima, é certeira ao construir um filme intenso do início ao fim, onde a verdade não é apenas a ponta do iceberg, mas antes derrama e transborda de forma ininterrupta. Cinema, para Cassavetes, é tal qual uma correnteza: uma fonte infinita de movimento. Daí vem a associação do seu cinema à ação dentro do tempo (não a montagem conduzindo a ação, mas o espaço e o tempo como palco da ação), ao desgoverno, a uma pluralidade de situações que não necessariamente começam ou mesmo se concluem.
Em sua maturidade artística, Cassavetes não se contentou apenas em ser uma referência ou um guru conselheiro da geração que o sucedeu; após projetos menos expressivos, Canção da Esperança (Too Late Blues, 1961) e a produção de estúdio Minha Esperança é Você (A Child Is Waiting, 1963), com Judy Garland e Burt Lancaster, Faces (idem, 1968) trouxe meio mundo abaixo com uma forma muito particular de se fazer cinema – não apenas enquanto obra, mas também como possibilidade de realização, distribuição e exibição paralela ao modo normativo das corporações.
Os filmes de Cassavetes foram uma corajosa alternativa ao esquema selvagem e monopolizante do mainstream Hollywood, que nos anos setenta deu um raro espaço a iniciativas mais arriscadas e a outras estéticas longe do filme de forma moralizante, que quer necessariamente criar uma percepção de mundo tida como verdadeira (valendo-se disso para a música incidental tensa e emocional, das caras conhecidas que movimentam capital, de certos modos de enquadrar) para dar espaço ao quadro contínuo e ao fluxo ininterrupto. Da grande ruptura não só de hábitos e costumes, mas sobretudo estética que foi os anos setenta, Cassavetes continua como um dos mais radicais, cuja força ainda se mantém inalterável. A marginália em seus filmes faísca: vemos e ouvidos pele, suor, sexo e violência, gritos e cantos de forma descontrolada, livre e, mais do que tudo, independente. Como só Cassavetes sabia fazer.
tenho que verrrr
Fantástico!
É meu favorito do Cassavetes!
Crítica fodástica como sempre!
Como Cassavetes dizia: só temos duas horas para mudar a vida das pessoas.
caramba!