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Críticas

Cineplayers

O cinema inclassificável de Jodorowsky. Abra los ojos!

10,0

Edição (24/04/2017): A Montanha Sagrada foi lançado em DVD no Brasil pela distribuidora Obras-Primas do Cinema, em edição especial que reúne cópia integral e remasterizada do filme, além de muitos extras, como os esclarecedores comentários do diretor sobre os signos e enigmas do filme. Mais informações no site da distribuidora.

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Diretor de cinema e teatro, ator, produtor, compositor, escritor, autor teatral, filósofo, humorista, especialista em tarot, um dos criadores do “Teatro do Pânico” e do conceito de “Midnight Movies”, espiritualista e mestre dos quadrinhos. Essas são as "qualificações" de Alejandro Jodorowsky, cuja obra cinematográfica, apesar de não tão vasta, é considerada ainda hoje como uma das mais instigantes e experimentais, fazendo coro com cineastas como John Walters e David Lynch.

Dizem que o vovô do cineasta foi um judeu russo que trocou a Ucrânia pelo Chile, e atravessou os Andes acompanhado de uma mula e de sua Torá. Se isso assim o foi, teria sido possível a Jodorowsky escapar a uma predileção natural pela força do simbolismo? Principalmente o simbolismo mítico, numa mistura de fontes, entre cristãs, judaicas e pagãs; entre heranças e uma realidade lingüística e cultural diferente.

Assim, recebemos em forma de filmes a conjunção destas referências, a busca incessante pela revelação de uma supra-realidade: o que Jodorowsky quer é desafiar o homem comum a experimentar sensações às quais ele normalmente não se permite, partindo assim a um novo estágio, onde o homem entenderá melhor a sua própria natureza, sem as prisões dogmáticas às quais está acostumado a acomodar-se.

Essa é a natureza de A Montanha Sagrada. Esse foi meu primeiro contato com a obra de Ojodoro, aproveitando uma mostra promovida pelo CCBB que em sua fase carioca encerra-se neste final de semana. Apesar de já ter lido alguns artigos e críticas a respeito do autor - que oscilam entre considerá-lo gênio ou um contestador nonsense - desenvolver uma opinião escrita a respeito da experiência única de assistir a um filme seu, ainda mais em tela grande, pareceu um desafio tão interessante quanto necessário.

O cinema de Jodorowsky se mostrou complexo desde seu início: seu segundo filme, El Topo, foi gravado no México e com recursos próprios. Buscando a entrada no mercado norte-americano de cinema, ele tentou em vão vender os direitos deste filme. O problema é que em 1970 esta película não possuía par e os produtores não sabiam como vendê-la. Chegando então nas mãos de um antigo produtor que possuía uma sala de cinema em Nova York, o Cine Elgin, foi feita a proposta de exibirem El Topo nas sessões de meia-noite. Algumas semanas depois a sala não só estava lotada, como filas dobravam a esquina. A partir de então a maioria dos filmes considerados "inclassificáveis" passaram a ser denominados Midnight Movies, exibidos nesse horário não-comercial e criando uma série de fiéis seguidores do gênero.  Essa é uma façanha importante sem a qual muitos absurdos maravilhosos do cinema talvez não existissem, vide a importância de um Lynch nos dias de hoje.

Voltemos à Montanha Sagrada...

Numa grande alegoria, com cenas e cortes que vez por outra não se conectam por uma lógica narrativa comum, a ação começa com Jodorowsky – guru numa espécie de rito iniciático, para em seguida sermos apresentados a um homem a quem chamam Ladrão cuja figura lembra a de Jesus Cristo. Ladrão vaga pelas ruas do México quando é crucificado e apedrejado por um grupo de crianças. Nesse momento ele inicia uma verdadeira amizade com um anão que será um dos poucos a acompanhá-lo em sua saga. Partindo para a cidade eles são testemunhas de várias situações, como um episódio em que soldados massacram alguns cidadãos comuns enquanto alguns estão às voltas com prostitutas de todos os tipos, cores e tamanhos. Felizes e sorridentes, um casal de turistas fotografa tudo com grande curiosidade. O tom de crítica é explícito!

Depois de algumas voltas, Ladrão é "sequestrado" por uns tipos que se assemelham a autoridades religiosas, que o carregam e preparam, fazendo dele o molde para várias estátuas de um homem crucificado. Ao acordar e se deparar com várias cópias de si mesmo, Ladrão tem um surto e no meio dele é acolhido pela prostituta-com-um-chipanzé, uma caricatura de Maria Madalena, que a partir daí será sua seguidora fiel.

Ainda vagando, ele encontra uma torre enorme que se ergue até o céu, e resolve escalar para encontrar uma resposta. No topo da torre ele encontra Jodorowsky-Alquimista que resolve prepará-lo e iniciá-lo num grupo de escolhidos que terão acesso a uma aventura em busca da montanha sagrada, na qual terão acesso ao segredo maior da existência. Dentro da torre tudo é simbólico: elementos alquímicos, pops, o yin e o yang, cartas de tarot e o cocô como elemento de expurgo e transformação interior. Tudo são artifícios cabíveis na alegoria de Ojodoro. Os outros escolhidos são também um capítulo à parte, com referências ao absurdo da industrialização e do consumo, da ganância e do materialismo dominantes na sociedade, esses escolhidos se fazem escolher justamente por seus deméritos e ganâncias.

Montado o grupo, eles partem para a viagem final à montanha sagrada. Pelo caminho, provações e tentações os aguardam e mais e mais alegorias se apresentam e se acumulam, até o final metafílmico que está ali justamente para colocar o espectador consciente da ilusão ficcional, jogando com o próprio engendramento da realidade a qual muitos enxergam sob o signo da ficção.

Merece destaque a cena em que Ladrão tenta multiplicar os pães para saciar a fome de um grupo de crianças, ao que é advertido por Jodorowsky – guru, que lhe mostra a pequena guerra em que se transformaria o acúmulo dos pães multiplicados. Sarcástico, escatológico, filosófico e mimético são alguns dos adjetivos possíveis de A Montanha Sagrada. Definitivamente, um clássico que deve ser assistido.

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