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Abraham Lincoln. O décimo sexto presidente dos Estados Unidos entrou para a história como um dos grandes presidentes do país ao garantir a preservação da União durante a Guerra Civil e ao final da mesma abolir a escravidão. “Abe”, de tâo icônico, é uma das figuras com maior número de representações na cultura popular, com inúmeros diretores e atores dando a sua versão sobre a prodigiosa vida do presidente e seus feitos no cargo e a sua trágica morte pelas mãos do ator e simpatizante dos confederados John Wilkes Booth.
Com diferentes resultados, todos retrataram um dos grandes mitos americanos, cuja história muitos já sabem de cor e salteado. Mas e o homem antes do mito?
É com esse espírito de romance de formação que John Ford, o homem que cristalizou a fundação de um espírito americano em seus filmes, dirigiu A Mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln, 1939), focado inteiramente nesse tal homem antes do mito. Henry Fonda não interpreta o presidente Abraham Lincoln, mas o jurista Abraham Lincoln, de origem humilde, filho de pais iletrados e autodidata em advocacia.
Ford enquadra basicamente a sociedade rural, o campo, o interior profundo dos Estados Unidos, a terra de onde nasce o sonho da terra das oportunidades mas que, no fundo, se mantém com seus valores inalterados. Seus personagens retratam esses cenários: mesmo após mudar de sua humilde Nova Salem para a capital Springfield, Lincoln continua sendo valorizado pelo roteiro de Lamar Trotti (que também escreveu Juiz Priest, de Ford, e Consciências Mortas, de William A. Wellman) como aquela figura carismática e bondosa, que fala a língua do povo, é pragmático em defender o direito de defesa do indivíduo e que marca a vida de todos que cruzam seu caminho.
O roteiro, muitas vezes de forma exagerada (que apenas em parte é fidedigno à história verdadeira) e às vezes até mesmo cômica mostra o homem simples e grandioso que era Lincoln: de pobreza quase franciscana, chega na capital montando uma mula por não ter dinheiro de comprar um cavalo, encorajado pela sua amiga e amor platônico Ann Rutledge. Lá, abre um escritório e começa a praticar a lei, de maneira humana e espirituosa, até surgir o primeiro grande caso: um homem é assassinado durante uma briga durante as comemorações de 4 de Julho, sendo os dois principais suspeitos irmãos de uma família camponesa.
Marcante, a cena do assassinato é uma divisora de águas para o advogado em ascensão e para a trama da narrativa. Abraham, como representação clara de símbolo e norte humanista da trama, interrompe um princípio linchamento clamando pela razão e pelo direito a julgamento, o que irá tomar basicamente o resto do filme, com Lincoln atuando como defensor dos réus e procurando uma maneira de contestar o depoimento da testemunha-chave.
O diretor francês Jean-Marie Straub certa vez causou surpresa e discussão ao declarar que, em matéria de construção dramatúrgica, considerava Ford o mais “Brechtiano” dos diretores. Ainda que seja uma questão longe de um consenso, não é difícil entender o por quê de relacionar o cinema diretor considerado uma das principais figuras de um cinema ‘clássico” com o alemão pai do teatro épico e um dos maiores ícones do período moderno dessa forma de arte. Ford fala de sociedade o tempo todo em seus filmes, assim como o teatro baseado em alegorias de relações sociais do dramaturgo alemão.
Dessa forma, Ford nunca põe em tela um personagem que não represente, necessariamente, um aspecto da história de seu país: seja um soldado, padre ou advogado, um fora da lei ou um xerife, um imigrante ou um nativo, todos que aparecem em tela estão ali para servir a uma argumentação e de certa forma induzir o espectador ao refletir as condições, preocupações e formas de pensar de um diversificado coral de vozes.
A Mocidade de Lincoln não é diferente: boa parte do filme é dedicada a mostrar as crenças da população, seus costumes, os valores que prezam, os comportamentos que condenam. O advogado Abraham Lincoln é o homem que consegue conciliar todas as características de um indivíduo exemplar dessa nação. Antes de uma propaganda, há de se entender que há um ideal de Ford posto à luz do conflito, o que o diferencia de uma propaganda de retórica fácil.
Com isso, muitos de seus personagens são homens devastados pela experiência que carregam, mas muitos outros são homens que acreditam piamente nos ideais de democracia, liberdade, fé, garantia de direitos constitucionais, redenções e reinvenções. Vendo a terra cuja proposição é o “homem feito”, Ford não filma uma terra idealizada, gravada em pedra: grava uma terra cujos personagens confiam em suas convicções, mas moldam o destino que lhes é apresentado através das próprias mãos.
Por isso, há a ideia de filmar a própria mitologia da forma mais humana que se permite - uma reconstituição (ainda que com liberdade) através das imagens em movimento, das lentes cinematográficas. Ford emprega rimas visuais para sugerir a consistência dos valores - Lincoln se senta de jeito espaçoso tanto de macacão numa fazenda quanto de terno em um tribunal; em diferentes momentos contempla a natureza, solitário e introspectivo. Em planos gerais, esses momentos de solidão de Lincoln nos distancia, não nos deixam chegar perto de seu pensamento, mas também nos permitem ver uma silhueta conhecida se formando - o homem alto de roupas formais e cartola característica, evocando o potencial conhecido que este até então desconhecido ocultava em si.
Focado em nos apresentar um indivíduo com potencial para se tornar um futuro líder histórico, o filme lança a mão de recursos visuais o tempo todo para nos ver o mito ser criado. Nesse espírito grandioso e simples, de que se pode fazer de tudo desde que com raízes bem sólidas fundamentadas em pequenas coisas, algo que pode parecer contraditório mas nos filmes de Ford cai como uma luva, é divertido ver como o indivíduo incerto põe o destino nas mãos da sorte no início do filme para no final, já altivo e grandioso, assume a dignidade de uma respeitável figura que não se encolhe diante de nada.
O pavimento entre essas duas imagens - o rapaz que contempla o campo bucólico de macacão, o homem feito de feições decididas que encara o morro relampejante - está preenchido de descobertas e desafios, que no final, irão desembocar no personagem mitológico pronto para realizar os grandes feitos cantados pelo século.
A Mocidade de Lincoln é esse canto que atravessou o século, nem sempre preciso ou real, porque seu diretor não quer, exatamente, falar sobre o que é, como é - mas sobre o que pode ser, o que separa o “Abe” do “Abraham”, como um vive em outro, como um homem pode argumentar de maneira tão sofisticada e ainda assim apresentar os costumes mais simples. Para Ford, não há choque aí: seu personagem é tudo isso e sempre pode ser mais.
Outros papéis de Fonda em parceria com Ford - o agricultor tornado rebelde Tom Joad em As Vinhas da Ira, o amedrontado porém resoluto sacerdote de O Fugitivo, a fibra moral e humana de Wyatt Earp em Paixão dos Fortes - só provam o quanto Ford estava mais interessado não em documentar os Estados Unidos, mas falar sobre ele, pensar sobre ele, dialogar sobre ele. E é surpreendente como tantos anos depois, essa cinebiografia, em sua ousadia de utilizar seu protagonista da vida real para falar de ideias profundas, consegue ser tão mais dialética, no sentido de argumentar e esperar a formação de uma resposta de quem assiste, do que muitas que costumamos ver hoje em dia.
Tomado como um cineasta “antiquado” na visão de muitos, como aquele que seguia a forma clássica de se filmar histórias pragmaticamente, os filmes de Ford revelam para aqueles que os assistem um vigor impressionante em sua construção, símbolos visuais ainda funcionais ao compor uma visão romântica e esperançosa da América e seus tipos em conflito consigo mesma, suas questões, preocupações e limites. A Mocidade do Lincoln, entre tantos outros filmes sobre grandes figuras, faz a pergunta de onde podemos desconstruir e construir tudo - quem é o mito?
Como poucos conterrâneos, Ford pensou sobre sonhos, sobre fundação, sobre caminhos possíveis - um verdadeiro artesão do mito e de sua influência duradoura sobre a formação da identidade dos habitantes de uma nação - que almejam ser, tal como seus heróis, simples de espírito mas grandes nos feitos. O artista arquetípico em toda a sua excelência.
esse já tava na lista pra assistir, agora entrou na fila de vez
Belíssimo texto, Brum. 😁
Bom texto,parabéns!
o personagem do lincoln é estupendo, parece que ele tem consciência do seu destino e sente esse peso em suas costas