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Críticas

Cineplayers

Tempos de barbárie.

7,0

Logo nas primeiras sequências, é possível perceber a ironia contida no título de Minha Felicidade (Schastye moe, 2010), filme de estreia do diretor ucraniano Sergei Loznitsa. Sem qualquer cerimônia, o corpo de um homem é jogado em um canaleta repleta de cimento. Não sabemos se ele está morto ou apenas inconsciente. Em seguida, um caminhão se movimenta em direção à câmera e completa o serviço. Enquanto o mesmo caminhão se afasta, vemos pessoas agrupadas ali perto, certamente cientes do que acabara de ocorrer, mas sem expressarem qualquer reação contrária. Acompanharemos momentos parecidos ao longo do filme, em que o respeito pela vida humana é objeto raro. Se a realidade atual da Rússia é igual à retratada pelas lentes de Loznitsa, a impressão que fica é de que o país voltou aos tempos da completa barbárie.

Não espere de Minha Felicidade uma estrutura tradicional. A narrativa se inicia sob a forma de um road-movie. Georgy (Viktor Nemets), um motorista de caminhão, se embrenha pelo interior da Rússia para fazer a entrega de um carga de flúor. Ao longo do percurso, ele se depara com policiais de estrada corruptos, que aproveitam a autoridade que o crachá lhes confere para assediar sexualmente as mulheres que são paradas para fiscalização, com um veterano de guerra, que lhe descreve os contratempos com seu superior hierárquico, com uma adolescente que se prostitui à beira da estrada, com os frequentadores de uma feira a céu aberto e com assaltantes de carga. Em certo sentido, essa primeira parte de Minha Felicidade lembra um pouco Gosto de Cereja (Ta’m e guilass, 1997), em que Abbas Kiarostami revelava o verdadeiro Irã por meio das conversas entre o motorista suicida e seus caronas (um jovem soldado, um velho e um cientista). Aqui, Georgy não pretende se matar, mas ele também é testemunha ocular de um País em estado de quase pré-civilização. A corrupção rola solta, as autoridades se veem acima do bem e do mal, o abastecimento de combustível é precário, e a prostituição infantil é vista como algo perfeitamente natural. Naquele miolão da Rússia, encontramos uma verdadeira terra de ninguém. Vale a lei do mais forte. As instituições não têm mais representatividade perante a população, que carrega no semblante o sofrimento de uma nação. Se a queda do Muro de Berlim e a derrocada dos ideias comunistas serviram para descortinar ao mundo as mazelas da sociedade russa, Minha Felicidade nos mostra que pouca coisa mudou – se não piorou – nesses anos que se passaram.

Essa primeira metade do filme será abandonada sem muito avisos prévios, após uma guinada radical que haverá na história lá pelas tantas. Os espectadores que têm aquela necessidade de estarem sempre à frente do filme podem se sentir frustrados como a opção de Loznitsa. Mas, claro, não é com esse público que ele está tentando se comunicar. Minha Felicidade exige um pouco mais da participação do interlocutor. A ele caberá preencher os espaços vazios que Loznitsa passará a deixar aqui e ali a partir desse momento da trama.

Loznitsa situa a narrativa em dois momentos diferentes, uma no tempo presente e outra logo após o encerramento da Segunda Guerra Mundial. A transição entre ambos nem sempre é de fácil percepção. O artificio pode causar um estranhamento, mas é justamente essa a proposta do diretor. Quando testemunhamos atos que nos repugnam como seres humanos, como a morte de um pai diante de seu filho, a exploração sexual de um homem em estado praticamente vegetativo, ou a venda de um corpo cimentado, sem sabermos precisr a época em que eles ocorrem, o diretor consegue passar seu recado de que o caos social que a Rússia vive nos dias de hoje não é muito diferente daquele que a população experimentou na época do maior conflito bélico da história da humanidade.

Há um fato polêmico em Minha Felicidade e que pouco foi comentado na época em que o filme concorreu no Festival de Cannes de 2010. Em dado momento, soldados russos que estão fugindo dos nazistas pedem abrigo a um professor. No meio do jantar, este revela sua opinião sobre o conflito: para ele a Rússia deveria se deixar ser tomada e conduzida pelos alemães, já que Hitler, crente em Deus, seria capaz de construir uma grande nação. Como sabemos o desfecho da Segunda Guerra Mundial, cabe a pergunta se o desejo expresso por aquele personagem deve ser visto apenas no contexto de um roteiro cinematográfico (afinal, a frase explica em parte o desenlace do atrito entre os solados e o professor), ou se, no fundo, este não seria uma vontade não tão inconsciente do próprio diretor do filme. Em outras palavras, se Hitler tivesse assumido a Rússia, as coisas teriam andado melhor? Se o nazismo é algo execrável, o que dizer da barbárie que se institucionalizou no país? O retrato que Loznitsa pinta da Rússia atual, combinado com o diálogo entre o professor e os soldados, parece nos indicar qual seria sua resposta.

A mise-en-scène de Minha Felicidade revela a origem de documentarista de Loznitsa: muita câmera na mão, sequências construídas quase sempre por meio de um único e longo plano, pouquíssimos cortes, e o máximo de realismo possível. Desse rico material, três cenas se destacam em particular:  na primeira, quando Georgy é parado na estrada para verificação dos documentos do veículo, Loznitsa coloca sua câmera atrás do motorista e enquadra todos os personagens (os dois policiais rodoviários, Georgy e a motorista do outro carro parado mais à frente) em apenas um take. A segunda, o longo plano-sequência no meio do mercado a céu aberto, em que vemos o sofrimento estampado no rosto da população local. E a terceira, o violento confronto no final, simplesmente de cair o queixo. Decupagem boa é assim: sofisticada e invisível.

Apesar destas características, o estilo de filmagem de Loznitsa – ou talvez o seu não-estilo – não o aproxima de outros cineastas russos, mas sim da nova geração de diretores romenos, como Cristi Piu e Cristian Mungiu. Por mais de uma vez, as imagens secas e cruas de Minha Felicidade me trouxeram à mente o universo insuportavelmente verdadeiro de A Morte do Sr. Lazaresco (Moartea Domnului Lazarescu, 2005) e 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile, 2007). Não é à toa que o nome de Oleg Mutu seja o homem que assina a direção de fotografia destes três filmes.

Minha Felicidade chega com muito atraso ao nosso circuito comercial. Mas pelo que ele representa como cinema experimental e denúncia social, antes tarde do que nunca.

Comentários (1)

Patrick Corrêa | quinta-feira, 10 de Maio de 2012 - 22:13

Discordo de praticamente toda a crítica.
A escolha de uma narrativa não linear e a dissolução do protagonista se revelam um quase desastre.

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