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Críticas

Cineplayers

A crítica às tradições por David Fincher.

8,5

A Suécia que David Fincher retrata em seu novo filme, no fim das contas, não é muito diferente daquela América profundamente perturbada de filmes como Seven – Os Sete Crimes Capitais (Seven, 1997) e Clube da Luta (Fight Club, 1999). É tão assustadora e cheia de segredos que preferimos não saber quanto a Califórnia de Zodíaco (Zodiac, 2007), onde a cinematografia escura e opressiva continua imperando absoluta – correndo o filme todo acompanhado de uma trilha sonora pontual que nunca massageará os nervos de quem assiste à obra.

Fincher é um cineasta da angústia; seus personagens são párias que não conseguem adaptar-se a lugar algum. É o caso tanto de Mikael, um jornalista divorciado que dorme com a patroa casada, quanto da “freak” Lisbeth, uma jovem adulta, gênia da investigação, com um passado profundamente traumático relacionado a abusos, que se vêem envolvidos em uma história que assombra a fria cidade de Hedestad há décadas, envolvendo uma família, a chacina de várias mulheres judias e o desaparecimento de uma garota ocorrido há décadas.

Esses desajustados terão de bater de frente com uma base fundamental da sociedade, à qual nenhum deles conheceu o significado: a família. Tal pilar da sociedade cristã-burguesa é alvo de profunda abordagem, investigação e crítica em Millenium — Os Homens que Não Amavam as Mulheres (The Girl With the Dragon Tatoo, 2011); a escolha de filmar numa localidade pequena e afastada de um centro urbano reforça o poder de síntese do lugar onde a história é contada, como afeta e é afetado pelos personagens; há 120 anos ocupando Hedestad, os Vangier são a própria síntese da ruína da família tradicional: entre seus membros, têm um imenso histórico de violência contra a mulher, vícios diversos e ligações de alguns membros da família com o partido nazista na época da guerra.

Esse fantasma ainda assustador de um local não globalizado, interiorano e ilhado em si mesmo, que vive dos rumores, da fofoca e do dito pelo não dito, sem grande conexão com o resto do mundo, revela frente às lentes figuras dominadoras, antíteses de alguns de seus filmes – ao contrário de Clube da Luta, não são machos lutando para recuperarem a relevância que tinham no mundo, mas sim o ato de observar uma figura próspera tornar-se doentia, brutal e ameaçadora. O respeito logo dá lugar à intimidação. A aparência respeitável logo revela ter sadismo como recheio.

Conceitos intrinsecamente ligados, o patriarcalismo, a misoginia e a xenofobia são o interesse principal de Os Homens que Não Amavam as Mulheres. No interior ou na cidade, ilhado ou em contato, são valores que, misteriosamente, ainda persistem em um novo século que prega a tolerância e a liberdade acima de tudo. A percepção estrangeira de um problema doméstico da Suécia acaba não afetando a obra em si, uma vez que no próprio país de origem do cineasta, assim como a maioria dos países hoje em dia, ainda há uma forte consciência nacionalista, de uma família que não aceita intrusos e resolve seus problemas por si mesmo. Controlada, dominada e guiada por homens, onde as mulheres são coadjuvantes, submissas e servas aos caprichos masculinos.

Essa alegoria em forma de thriller encontra sua voz em Rooney Mara interpretando Lisbeth Salander: sem família, com piercings, tatuagens, cortes de cabelo, costumes sexuais liberais (transa com ambos os sexos, mesmo quando a diferença de idade é grande, sem compromissos específicos) e se sustentando sozinha com sua ocupação de detetive, ela é deslocada em um país que definitivamente, nos costumes, não caminhou a largos passos para o mundo contemporâneo, onde se prega desde os anos sessenta a liberdade estética, de gênero e sexual. A todo o momento ela entrará em atrito com os homens da trama: tutores pervertidos, os assassinos de judias, a relação de parceria e sexo com Mikael... Identificada com o anacronismo de Marla Singer (de Clube da Luta), é a perfeita figura da nova mulher, em atrito constante com o resto do mundo por não aceitar submeter-se e exigir tratamento igualitário.

O mais interessante nas tramas de David Fincher é que as tramas em si, o que se convenciona a chamar-se de plot, jamais são o foco principal do diretor. O que interessa ao realizador, na verdade, são os personagens que cria – não à toa, que nas duas horas e quarenta minutos de filme, é notável como a trama de whodunit só duraria o suficiente para preencher um filme de noventa minutos. Todo o resto é para se aprofundar nas relações sociais e na atmosfera perversa que cercam os dois personagens principais – principalmente Lisbeth, o elo mais fraco da corrente. Mas nem por isso deixando de afetar Mikael – uma reedição do Narrador de Clube da Luta ou do cartunista Robert Graysmith em Zodíaco: homens que perderam o sentido antigo de “família” e “masculinidade” e agora vagam em um mundo hostil à sensibilidade que descobriram ter – é notável ver isso quando se vê na angústia de não ter mais muito contato com sua filha adolescente, ter um relacionamento pouco concreto com a superior, adotar um gato de estimação e atrair-se sexualmente por uma mulher bem mais nova, simplesmente levado pela corrente dos acontecimentos.

Entre dominadores confusos sobre seu papel quando a roda dos fatos gira e submissas querendo a liberdade em sua mais plena acepção, o filme de Fncher parece, muitas vezes, um apelo à aceitação de novos tempos e por mais tolerância, mas sem jamais perder a nota melancólica e pessimista ao seu final: é fato que certos hábitos são difíceis de se mudar. Lisbeth, desiludida com um mundo que muda muito rápido mas não muda as pessoas junto dele, faz o que tantas outras aberrações sociais que a precederam no mundo das artes narrativas fizeram: foge sumindo no horizonte. Na esperança de encontrar um mundo mais sensato, mais consciente de si e mais compadecido de seus filhos mais sensíveis. Uma busca que, dado o espírito que reina nos filmes de Fincher, não vai acabar tão cedo.

Comentários (15)

Rafael Cormack | quinta-feira, 09 de Fevereiro de 2012 - 11:32

Apesar de quase ter infartado ao ler que o autor da crítica considera Zodíaco o melhor filme do Fincher, (opinião cada um tem a sua, né?), achei excelente a crítica. Achei o filme um pouco cansativo no final. Quando a estória dos assassinados é desvendada, não sobra mt paciência pra acompanhar outra trama ser resolvida, talvez pelo fato do Fincher não ter se aprofundado no drama particular de Mikael no início do filme... (nem teria como, senão o filme ficaria com 4 horas...)

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 30 de Novembro de 2013 - 13:09

Apesar da inusutada abertura do filme, uma história tão boa, com atores tão bons e um diretor tão genial como Fincher, só podia resultar em um filmaço nota 10!!!!!!!

Raphael Aguiar | quarta-feira, 05 de Fevereiro de 2014 - 17:04

Nota 10!!!! De todos do Fincher acho que esse só perde pra \"A Rede Social\", um thriller impecável e uma performace excelente de Rooney Mara. Um raro caso de refilmagem que supera o original,mas sendo que nesse caso o original era um lixo completo.

Francisco Bandeira | quarta-feira, 05 de Fevereiro de 2014 - 17:32

Tu assistiu Seven, Clube da Luta ou Zodíaco? 😲

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