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Críticas

Cineplayers

As lições de Harvey Milk devem ser lembradas até hoje.

9,0

"Aos que votaram contra o casamento gay, envergonhem-se". Essa foi a frase dita por Sean Penn em seu discurso de agradecimento pelo Oscar de melhor ator por sua interpretação de Harvey Milk, primeiro político norte-americano assumidamente homossexual, em Milk - A Voz da Igualdade. O recado dirigido aos californianos infelizmente prova que a luta pelos direitos de igualdade das minorias encabeçada por Harvey ainda precisa de novas lideranças capazes de mostrar ao mundo que o discurso conservador só traz atrasos à sociedade.

É triste constatar que anos após Harvey – com ajuda de diversos colaboradores - conquistar importantes direitos para a comunidade gay, por meio de sua militância política, o discurso retrógrado e desumano de pessoas como a atriz Anita Bryant – personagem mostrada na trama – ainda persiste em nome de um Deus vendido como segregador por pastores de instituições religiosas. Pregar um suposto desvio moral ou psicológico em função da orientação sexual é tão inaceitável quanto pregar a segregação racial ou a superioridade masculina. Essas são crenças de uma sociedade que nasceu sob a tutela de uma igreja que visava controlar as pessoas pregando o retrocesso e o controle de pensamento.

Inconformado por não poder ser quem realmente era, e por acreditar que chegava aos 40 anos de idade sem ter feito nada de importante, Harvey Milk decide mudar para a Califórnia ao lado de seu namorado (James Franco), a fim de dar uma guinada radical nos rumos de sua vida. A primeira mudança significativa acontece na postura de Harvey, que deixa de esconder sua preferência e sem medo dos julgamentos alheios demonstra seus afetos pelo namorado em público.

Porém, Harvey estava pré-destinado a passos maiores e, em pouco tempo, sua loja de revelação fotográfica recém-aberta na Rua Castro se tornou ponto de encontro da comunidade gay disposta a reivindicar direitos mínimos de igualdade, como a manutenção do emprego e o fim da perseguição policial. Para fazer com que suas vozes não ecoassem no vazio, Harvey percebe a necessidade de possuir um representante com capacidade de legislar em nome de todos os homossexuais da cidade, e a sua capacidade de liderança o tornou consequentemente a figura ideal para se candidatar a um cargo público.

Fazer um discurso que prega a diferença e ser ouvido é tarefa complicada, e a união de pessoas cansadas de se sentirem anormais ou inferiores por meio de sua orientação sexual é o caminho menos tortuoso para atingir os objetivos. E nesse sentido é triste constatar que as paradas do orgulho gay perderam seu sentido de reivindicação de direitos – apesar de ainda incentivarem importantes debates na sociedade – para se tornarem micaretas fora de época. Eventos desse tipo se tornaram uma grande festa para todos os gostos, e as pessoas esquecem, ou mesmo ignoram, o fato de aquilo ser uma manifestação para mostrar a inserção do “diferente” na sociedade.

A aceitação da homossexualidade por todos os grupos sociais é tarefa complicada, e não deve ser banalizada, mesmo que sua grande exposição na mídia leve, invariavelmente, a progressos na aceitação popular. A dor de ser tratado pelos demais como doente ao encontrar a felicidade e o prazer em alguém do mesmo sexo, somada à reprovação alheia, fora transmitida de maneira emocionante e tristemente convincente pelo personagem paralítico que telefona em determinado momento da história para pedir ajuda a Harvey, o que torna qualquer tipo de brincadeira com a vida humana reprovável.

No filme, as interpretações são muito verdadeiras. Se Sean Penn compõe com notória perfeição seu Harvey Milk – sem se tornar caricatural e com muita humanidade – Franco, Emile Hirsch e o político vivido por Josh Brolin seguem o mesmo caminho de humanização de seus personagens, independente de suas atitudes. Gus Van Sant executa com exímia perfeição seu trabalho de direção, imprimindo ao longa um tom semi-documental, com imagens reais da época (como as da desprezível Anita Bryant) além de enquadrar personagens como se fossem flagrados por uma câmara escondida em momentos comuns de seus cotidianos, como nas cenas em que Milk beija o namorado em frente a sua loja.

Ao retratar a comunidade gay sem a imagem de depravação erroneamente associada aos homossexuais e sem retratá-los com um grupo de afeminados, Gus Van Sant colabora para a desconstrução da imagem distorcida que muitos possuem dos gays. E não poderia ser diferente, já que o cineasta é gay e por consequência tem propriedade para abordar o assunto com mais sensibilidade e desprovido de qualquer visão minimamente preconceituosa e distanciada. Colabora para isso o roteiro coeso escrito por Dustin Lance Black, jovem também assumidamente homossexual. Roteiro e atuação premiados com o Oscar, só faltou mesmo o prêmio de direção ao trabalho mais louvável entre os que concorriam à estatueta.

O estilo de direção de Van Sant caiu como uma luva na história. Algumas opções de enquadramento são particularmente inspiradas, como é o caso da cena em que o cineasta coloca em plano Harvey e dois policiais por meio do reflexo deles em um apito, instrumento usado pelos rapazes homossexuais da cidade quando se sentiam ameaçados por algo ou alguém. A escolha se revelou inteligente por captar o silêncio e o descaso da sociedade por intermédio de um objeto que dava força e visibilidade ao jovem assassinado.

Após sensibilizar-se com a humana história de Harvey Milk, revolta ainda mais perceber como em pleno século XXI ainda existem discursos contrários à liberdade e diversidade sexual. Entristece ver cidadãos se considerarem superiores a ponto de julgar válido ou não a união de outras duas pessoas, e ver ainda que um profissional como o dublador oficial de Sean Penn no Brasil, Marco Ribeiro, recusou-se a trabalhar em Milk com a justificativa oficial de querer evitar problemas com a comunidade evangélica da qual é pastor. Quando será que as lições e exemplos de amor e tolerância servirão de alguma coisa? Que Milk consiga ser mais um passo rumo ao esclarecimento de que as pessoas merecem tratamentos iguais por serem humanas. Todos são dignos de respeito independentemente de sua raça, orientação sexual ou religião, afinal, não é isso que define o caráter de cada um.

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