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Críticas

Cineplayers

A fabulação trêmula.

6,0
É movediço o terreno das adaptações. Primeiro pelo embate que o cinema precisa estabelecer com a persistente ideia, não menos falaciosa ou ingênua, por mais que a passagem do tempo caleje a sensibilidade popular, de que toda obra adaptada deve ter uma fidelidade quase matrimonial com aquela que a originou. Depois, pelos níveis de significado e trama que se deseja extrair do texto-mãe, o que certamente leva o filme direto ao cerne da dificuldade aqui apresentada, e que se divide em dois movimentos cruciais: como criar, a partir da obra originária, um roteiro, para depois, nas palavras de Carrière, fazê-lo evanescer e se transformar num filme? Ou seja, de palavras lidas, passamos para palavras escritas até que finalmente tudo se evapore numa sequência de imagens. Tal é o caso das Metamorfoses (Métamorphoses, 2014) de Christophe Honoré, diretor para quem o título do próprio filme parece cair bem, tamanha a sua mutabilidade de estilos.
   
Evocando o clássico subtexto das Metaformoses de Ovídio, já carregadíssimo de simbolismos e cosmogonias nos seus milhares de versos, a tarefa de Honoré torna-se clara em sua introdução. Fabular a partir da palavra e de recursos típicos do cinema - cortes e close-ups -, transmutar homem em animal pela alquimia das trucagens, e, a partir daí, contar três estórias, entremeadas de pequenos recortes, seguindo os encontros de Europa, princesa humana, com 3 divindades, desde o momento em que é (confusamente) raptada por Zeus. 

Mas não é pelo literário que Honoré peca. No cinema, as adaptações manifestam o nível de fidelidade, e portanto da crença de quem as assiste, a partir dos contratos que insinuam naquilo que é imagético. O espectador, neste caso inocente, não precisa tomar conhecimento algum de onde o golpe o atingiu: sua ligação com o que vê é de imersão. A problemática da Metamorfose-filme é que o observador que conhece o subtexto se depara com personagens insossos, desprovidos de qualquer indicialidade da magia ou do escândalo dos mitos originais, enquanto que o espectador que dá a mão ao filme e aceita ser submetido certamente também se encontra inquieto com a falta de costura e o constrangimento de ter que dar sentido a algo que não está propriamente nas imagens, mas nos supostos fios que deve tecer a partir dela para dar continuidade a um contrato já estilhaçado.

Porque os personagens principais e aqueles que participam das historietas menores surgem repentinamente, como que para preencher espaços vazios, e cumprem funções que não parecem sustentar, adicionar ou fazer sentido perante as tramas maiores, das quais sentimos faltas quando a narrativa divaga. O filme de Honoré se assemelha a um livro ruim de mitologia: embaralha as tramas dos grandes deuses e heróis com pormenores mal inseridos, embora necessários, e faz tudo parecer uma cusparada de adolescentes excitados. Não provoca, não complexifica ou enriquece. 

É curioso, contudo, que as histórias que mais interessam são aquelas com conexões ao mundo ''real'', não-fabular. Justamente quando o filme toca a relação de Europa com Baco e Orfeu e traça paralelos entre a crença religiosa atual e a crença nas divindades antigas, vê-se renascer a potência das grandes narrativas mitológicas e sua capacidade de, como na tela de Buonarotti sobre a criação de Adão, fazer o sagrado e o terreno convergirem num simbolismo explicativo das origens do Homem. Paradoxalmente, se há alguma magia neste cinema, ela se dá nos breves vislumbres do mundo dos homens comuns.

Talvez falte a Honoré a perícia de um Eugène Green, com seu O Mundo Vivente (Le Monde Vivant, 2003), ou do Duelo (Duelle (une quarantaine), 1976) de Jacques Rivette. Nos maestros da fabulação, o ato de inventar se dá através da palavra emoldurada pelo quadro e impulsionada por uma mise-en-scène de gestualidades orgânicas. Um gesto de Bulle Ogier e sabemos estar, sim, diante de uma feiticeira do sol; um quadro excessivamente vivo de Green para elevar a palavra ao estatuto de magia, e fazer-nos simplesmente crer que um cachorro é um leão. Enquanto isso, há a fabulação trêmula de Honoré, a quem os musicais e romances parecem servir melhor, e o embaraço de ouvir pronunciado o nome de um deus por alguém que não sabe como dizê-lo.  

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