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Menina de Ouro

(Million Dollar Baby, 2004)
8,4
Média
1335 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Um drama envolvente, que trata de um assunto corajoso e, acima de tudo, nos faz pensar sobre os rumos que toma.

9,0

Em seu trabalho anterior, Clint Eastwood já apostava muito mais no drama do que em uma ação ou suspense consistente para fazer um bom filme. Com Sobre Meninos e Lobos, o diretor deu mais um passo no seu já alto padrão de qualidade, trabalhando excelentemente bem o sentimento de culpa entre ex-grandes amigos. Menina de Ouro, seu mais novo projeto, recebeu nada mais nada menos do que sete indicações ao Oscar, além de faturar dois importantes Globos de Ouro (direção para Clint Eastwood e atriz para Hilary Swank). Se é ou não tão bom quanto Os Imperdoáveis, só o tempo vai poder dizer. Mas que é uma obra riquíssima e cheia de detalhes percebidos aos poucos, isso não há dúvidas.

Frank Dunn (Clint Eastwood) é um velho amargurado e fechado, principalmente depois que sua filha o deixou e nunca mais deu notícias. Mantém uma academia de boxe, que ele tem plena consciência de que só traz prejuízos. A única pessoa com quem Frank ainda mantém uma boa relação é Scrap (Morgan Freeman), um ex-boxeador que ele treinara. Scrap perdera o olho direito em um combate onde deveria ter desistido alguns assaltos mais cedo, e Frank sente-se culpado por isso. Ele estava na equipe e nada fizera para impedir que seu amigo ficasse em sua atual condição. Apesar de ser um excelente profissional, Frank nunca emplacou um sucesso por sempre preparar demais os seus lutadores, e não marcar lutas mais ousadas para eles, deixando-os no forno tempo demais.

Em um desses momentos de solidão, sem ninguém para treinar, aparece na sua vida Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), uma garçonete de trinta e um anos que tem a certeza de que, se for bem treinada, poderá ser uma grande campeã dos ringues. Ela consegue, a muito custo, convencer o durão Frank a treiná-la, já que este sempre deixa bem claro que não treinava mulheres e a achava velha para começar agora. Os resultados vem rápido e parece que Frank tem uma nova pedra preciosa em mãos, que, se bem polida, pode lhe dar muito mais frutos do que seus pupilos anteriores.

Apesar de contar com excelentes seqüências de boxe, é bom deixar claro que este filme é um drama - dos pesados, por sinal. Os rancores e desilusões de Frank são a todo momento jogados na tela, deixando o ritmo bem lento e desenvolvido. A vontade de Maggie conquista e sempre faz a tela brilhar, exceto quando ela está fora dos quatro corners. Sua vida é tão conturbada que a vontade que ela tem de ser alguém melhor convence. Problemas com a família, que dá valor só ao dinheiro que ela conquista com suas lutas, sem ligar para as conseqüências físicas que um combate de boxe pode trazer, incitam péssimas repercussões pessoais para a lutadora.

É bom você ir assistir Menina de Ouro tendo em mente que o boxe só está lá para dar um charme a mais ao drama dos personagens. As lutas empolgam devido à excelente condução de Eastwood, nos deixando assistir sempre ao que está acontecendo, sem inserir um ritmo frenético na edição - o erro de grande parte das produções que tentam aumentar a adrenalina do público. Durante os diálogos, o diretor também não tenta ser mais importante do que está sendo dito, usando o simples para elevar o conteúdo do que os personagens estão vivendo.

É importante dizer que, mesmo que o filme tenha um ritmo mais lento para desenvolver os seus personagens durante boa parte do filme, o ritmo nos últimos trinta, quarenta minutos finais fica ainda mais devagar. Os personagens se encontram em uma difícil situação e, para que ela convença bem, esse ritmo se torna extremamente necessário. Ou seja, ele funciona na tela, mas é necessário que estejamos preparados para esta mudança. Como disse, e vou fazer questão de frisar a todo momento, o filme é um drama profundo, e não um conglomerado de cenas de ação.

É justamente nesses momentos finais que Menina de Ouro se revela ainda mais profundo e com um tema a ser discutido. Não se deixando levar pela política correta barata de Hollywood, Clint Eastwood coloca um final extremamente polêmico em seu filme, que com certeza ainda será alvo de muita discussão por aí. É algo que levanta um profundo questionamento moral da condição humana, que fecha com chave de ouro todo o conteúdo apresentado anteriormente. É um filme de como mágoas de ações passadas podem influenciar no presente. É um filme sobre decisões. É um filme sobre contrariar aquilo que parece correto, por algo maior e melhor.

Se o roteiro já não fizesse milagres, criando frases inteligentes, com conteúdo e balanceando bem o humor com personagens extremamente carismáticos, tudo poderia ir pelo ralo se fosse mal interpretado e dirigido. Clint Eastwood, como já foi dito, fez um trabalho primoroso na direção, de escolhas ousadas, e tem tudo para estragar a festa de Martin Scorsese esse ano. Na parte interpretativa, ele não fica atrás. Com o seu mau humor, provindo de um rancor interno, Eastwood faz um trabalho tão brilhante que, ao invés de criar antipatia por todo o mau humor e frases ditas na hora errada, ele nos aproxima de sua dor. É como se sentíssemos pena por Frank estar onde está, não raiva pelas suas atitudes com os outros, e torcêssemos pelo seu sucesso.

Repetindo a parceria criada em Os Imperdoáveis, Morgan Freeman faz uma brilhante interpretação com Scrap, talvez o único amigo real de Frank. Assim como todos os outros personagens do filme, ele tem um profundo background, trabalhado de modo que nos faz simpatizar pela sua simples e pobre vida. Até mesmo algumas atitudes, que poderiam ser consideradas traição de Scrap com Frank, são vistas por outros olhos. Esse é o brilhantismo do filme bem interpretado. O simples trazendo algo profundo e complexo. Aparentemente, nem a interpretação de Freeman como a de Eastwood parecem trazer algo novo, porém são justamente elas que contra balanceiam toda a dor e sofrimento dos personagens.

Agora a estrela mesmo é Hilary Swank. Depois de vencer o Oscar por Meninos Não Choram, a atriz parece estar no caminho de se tornar bi campeã - que me perdoem o trocadilho. Lindíssima, com um belo corpo, seu grande mérito é justamente não fazer com que sua aparência a destaque do cenário caótico onde a história é ambientada. Existem filmes onde a beleza de uma atriz a deixa totalmente fora do contexto, nos lembrando que aquilo é apenas um filme a todo segundo. Mas o trabalho de Hilary é tão intenso que fica impossível não acreditar no que estamos vendo. Com um trabalho físico primoroso, a atriz aprendeu a golpear e, com isso, suas lutas se tornam muito mais verossímeis na tela.

O reflexo de uma boa preparação não está apenas no ringue. Sua personagem tem uma forte determinação, que Hilary transporta para suas expressões de maneira bastante significativa. A cena em que ela tem o seu primeiro treinamento é fantástica. Ao mesmo tempo que se mostra determinada, transmite uma felicidade incontida por estar dando o primeiro passo para a realização de um sonho. Durante os combates, o seu modo de bater e as reações aos ferimentos parecem já garantir a bela interpretação da atriz. Só que havia mais.

No final, quando o filme dá uma grande reviravolta em seu ritmo, é onde ela é mais exigida. Com uma sensibilidade invejável, faz um perfeito dueto com Eastwood, a cada momento que o drama de sua personagem cresce gradativamente. É chocante ver a expressão de dor nos olhos da menina, o que vai levar, sem sombra de dúvidas, muitas pessoas às lágrimas. Só que o filme não busca isso. Ele não tenta, a todo momento, emocionar o público, graças a ótima preparação da situação anterior. O filme deixa que a emoção seja o resultado do trabalho, e não sua meta. Isso tudo acontece porque estamos dentro do drama da personagem, e não vivendo sua adrenalina.

Há apenas mais um quesito técnico que não deve ser deixado de lado: a narração. Usada quase sempre apenas para poupar cenas desnecessárias para o bom entendimento da história, aqui ela tem uma importância surpreendente maior, ao fechar com chave de ouro o excelente texto nela contida. Se tudo já é sensível e bem estruturado, ela não fica atrás e se torna um presente para aqueles que estavam acompanhando atentos aquilo que Scrap dizia durante toda a projeção.

Comparações com Rocky - Um Lutador são inevitáveis. Há quase 30 anos, Sylvester Stallone conquistava a Academia com seu personagem carismático, que tem a oportunidade de mudar a vida do nada. Só que Menina de Ouro, apesar de ter o mesmo background sombrio e também se preocupar com a construção do personagem, se concentra em um outro tema, que é o rancor, e não suas determinações (apesar de Maggie ser uma moça extremamente determinada, assim como Balboa). Não há um tema tão marcante quanto a música que envolve Rocky, mas Eastwood opta por trilhas bem mais leves, instrumentais tristes e lentos. Para se ter uma idéia, são músicas comparáveis à da abertura de Os Imperdoáveis.

Com uma poderosa preparação de personagens, Menina de Ouro se torna um dos grandes favoritos ao Oscar de 2005. Clint Eastwood constrói uma obra-prima através de um roteiro consistente, que trabalha a fundo seus personagens. Concentra-se sempre no que é interessante e marcante, e não apenas passageiro. Com algumas excelentes lutas para temperar ainda mais o seu prato final, o jeito é levar lenços e mais lenços para o cinema para não ter que deixar a manga da camisa ou o ombro do namorado encharcados depois.

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