Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Um verdadeiro monumento do cinema norte-americano.

10,0

Em 1952, Hollywood vivia sob a pesada e ameaçadora sombra da “caça às bruxas” do senador Joseph McCarthy. Com a paranóia anticomunista em alta, o político ganhou influência e poder ao caçar dentro dos Estados Unidos qualquer profissional simpatizante à causa, levando alguns atores, roteiristas e cineastas a delatarem colegas com o objetivo de salvar a própria pele. Diversos filmes da época fizeram críticas indiretas à questão, mascarando suas verdadeiras intenções através de histórias supostamente inocentes, como foi o caso de Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, 1956), Sindicato de Ladrões (On the Waterfront, 1954) e Matar ou Morrer (High Noon, 1952).

O contexto da história deste último, sobre o xerife que se vê solitário em uma cruzada após seus antigos amigos virarem as costas a ele, não passou despercebida a McCarthy. Logo após a estreia da produção, o roteirista Carl Foreman foi colocado na lista negra do senador, obrigando o escritor a se exilar na Europa (conta a lenda que John Wayne chamou o filme de antiamericano). Hoje, porém, estas histórias da época soam como nada mais do que meras curiosidades. Assim como outras grandes obras do período, Matar ou Morrer perdurou através de décadas não apenas graças ao que tinha a dizer sobre a paranóia, mas principalmente por sua força como Cinema, sua narrativa cuidadosamente construída e seus dilemas morais sobre a natureza humana. Não é preciso conhecer a história dos Estados Unidos no início dos anos 50 para reconhecer Matar ou Morrer como um dos grandes filmes do cinema norte-americano.

A exemplo do que Alfred Hitchcock havia feito alguns anos antes em Festim Diabólico (Rope, 1948), Zinneman e Foreman optaram por contar a história em tempo real: ou seja, cada minuto passado para o espectador representa um minuto vivido pelos personagens. O recurso, já utilizado diversas outras vezes desde então, poucas vezes funcionou tão bem quanto em Marcar ou Morrer. Os oitenta e quatro minutos do filme são de uma tensão constante, crescente e quase palpável; é possível sentir o desespero e a angústia de Will Kane à medida que a hora final se aproxima. Para alcançar isso, Zinneman se aproveita muito bem de um recurso simples, mas extremamente eficaz: os relógios. São poucas as cenas em Matar ou Morrer nas quais eles não são mostradas, seja através de planos-detalhe ou mesmo de relógios inseridos em segundo plano, realçando sempre a urgência da situação vivida pelo xerife. Assim, o espectador acompanha e vive junto ao personagem o desespero de ver os minutos se esvaindo, tornando cada vez mais inevitável o perigoso conflito.

Aliás, a construção dessa tensão gradual é, ainda hoje, a grande força de Matar ou Morrer. A cada nova cena, a cada novo minuto, a expressão de Gary Cooper torna-se mais angustiada, a cidade mais deserta e a hora se aproxima. Com isso, o nervosismo vai se elevando, em uma espécie de bola de neve até o final. Vale a pena notar, também, como Zinneman se utiliza da trilha sonora para alcançar esse objetivo, especialmente da música-tema: mais do que a letra sobre o personagem suplicando à esposa para que ela não o abandone, é a batida da canção de Dimitri Tiomkin que ajuda a deixar a plateia tensa, uma vez que ela soa exatamente igual à batida de um coração. Assim, ao ver Kane caminhando sozinho pela cidade que o abandonou, ritmado pelo som de seu próprio coração, é quase impossível não sentir compaixão pelo xerife, disposto a lutar sozinho por aquilo que acredita ser o certo – sem contar, claro, que estas são desde sempre algumas das imagens mais icônicas que o Cinema já produziu.

Mas a identificação criada por Zinneman entre o espectador e o protagonista também passa por outros artifícios. Em primeiro lugar, está Gary Cooper, naquela que talvez seja a sua melhor interpretação. Em Matar ou Morrer, ele, que sempre foi mais um astro carismático do que um ator realmente talentoso, é capaz de transmitir toda a preocupação crescente do personagem, e basta ver a diferença na expressão de Will Kane entre o início e o final do filme para perceber o ótimo trabalho de composição realizado por Cooper. Porém, o apelo do protagonista talvez esteja realmente nos valores que ele defende. Matar ou Morrer, na figura do xerife, é um conto moral sobre o certo e o errado, sobre a coragem de estar disposto a lutar por aquilo que se acredita, mesmo quando ninguém mais o faz. Kane é um homem preso pelo dever, incapaz de virar as costas diante das adversidades, ainda que isso possa custar seu recente casamento ou até mesmo sua vida. É um personagem rico, mas também não o típico mocinho que se via em westerns da época: ainda que seja capaz de lutar pelos seus princípios, Kane é um homem que sua, que cansa, que se machuca e que até sente medo. Não é um herói, mas apenas um homem, vulnerável, e isso acaba fazendo toda a diferença no momento de trazer a plateia para o seu lado.

Este dilema moral, porém, não se restringe ao personagem de Will Kane. De forma louvável, Zinneman e Foreman conseguem dar espaço para diversos personagens apresentarem seus próprios conflitos, mesmo no curto tempo de duração de Matar ou Morrer. Assim, o que se vê é a esposa recém-casada com medo de perder o marido, mas incapaz de deixá-lo; o auxiliar que não consegue conviver consigo mesmo por ter colocado a ambição acima do dever; a ex-amante que prefere não arriscar aquilo que já construiu, apesar dos seus sentimentos; e, claro, as demais pessoas da cidade que sabem como Will Kane está certo, mas preferem abandoná-lo à própria sorte em função de seus próprios interesses. Trata-se, portanto, de uma gama completa de personagens bem apresentados e desenvolvidos mesmo com pouco tempo em tela, em uma verdadeira façanha da parte dos cineastas.

Aliás, vale a pena ressaltar também outra grande realização de Zinneman e de sua equipe: o fato de Matar ou Morrer jamais soar excessivamente expositivo. O passado da cidade e dos personagens é fundamental para o filme e tudo o que a plateia sabe sobre isso é apresentado através de diálogos, sem a utilização de flashbacks ou qualquer outro recurso. Mas Foreman, Zinneman e o elenco conseguem fazer com que cada conversa soe orgânica aos acontecimentos – não há aquele momento forçado no qual o filme parece parar para explicar algo. O grande exemplo disso é a forma como a reputação de Frank Miller é construída: o espectador não vê o bandido até os dez minutos finais do filme, mas o medo das pessoas dele e de seu bando (como a mulher que faz o sinal da cruz ao vê-los entrar na cidade) fazem com que, para a plateia, ele pareça um sujeito extremamente perigoso e inconstante, realmente capaz de gerar pavor em uma comunidade inteira.

Como se não bastasse todo o cuidado e os acertos na construção da estrutura de sua obra, Zinneman ainda merece aplausos pela realização de alguns grandes momentos pontuais, que apenas engrandecem ainda mais a experiência que é assistir a Matar ou Morrer. O conflito final, por exemplo, representava um dos grandes perigos para o cineasta: tudo o que havia sido apresentado até então levava àquele momento, e ele deveria fazer jus às expectativas, de modo que não soasse anticlimático. Felizmente, o duelo entre Kane e os quatro homens funciona de forma exemplar, evitando o clichê de mostrar o mocinho eliminando os vilões com facilidade ao apresentar Kane passando dificuldades para sair vivo da situação (sem contar a coragem de este ser o único tiroteio da produção, algo raro para o gênero). Da mesma forma, é difícil não citar a cena que traz diversas imagens de pessoas da cidade em silêncio, aguardando o momento crucial enquanto Kane redige seu testamento, ou os dois significativos planos que ressaltam a solidão do xerife em sua tarefa: o primeiro quando as duas mulheres de sua vida passam por ele sem proferirem ao menos uma palavra, enquanto a câmera se afasta junto à carruagem; e o segundo quando a câmera sobe em uma grua para ressaltar a cidade vazia e o xerife caminhando sozinho rumo ao inevitável destino.

É fácil compreender porque Matar ou Morrer tornou-se uma verdadeira referência, não apenas para o gênero, mas para o próprio cinema. Trata-se de um filme que funciona brilhantemente ainda hoje, uma produção que ousou trabalhar os elementos do western de uma forma diferente, e ainda teve a coragem de dizer algo sobre o momento político de seu país àquela época. Em outras palavras, tudo o que é necessário para um grande clássico. E talvez até mais um pouco.

Comentários (13)

Alexandre Marcello de Figueiredo | terça-feira, 15 de Janeiro de 2013 - 19:51

A tensão pulsa conforme a aproximação do confronto final e deixa o espectador angustiado junto com Will Kane. O filme tem pouca duração, na medida, e não se consegue desgrudar da tv até o desfecho. Muito bom.

Francisco Bandeira | domingo, 24 de Novembro de 2013 - 19:51

Filmaço, assisti hoje novamente... Final emblemático!

Alex Júnior | segunda-feira, 19 de Outubro de 2020 - 10:28

Ao lado de "Os Brutos Também Amam", esse é melhor faroeste, pra mim. Realmente, um verdadeiro monumento do cinema norte-americano.

Faça login para comentar.