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Críticas

Cineplayers

Filme nostálgico que remonta certa ingenuidade de um cinema que não existe mais.

7,0

É provável que o título do filme Marcelino Pão e Vinho não diga muita coisa em um primeiro momento para as gerações mais jovens; no entanto o cenário muda radicalmente de figura quando os questionados a respeito deste longa europeu fazem parte das gerações mais anciãs – se você se enquadra no primeiro grupo, pode ir tirar a prova real com alguém mais velho que o resultado é praticamente certo. Este filme de 1955, vastamente reconhecido nos mais importantes festivais de cinema do mundo (como em Cannes e Berlim), foi um grande sucesso popular ao redor do mundo ao arrebatar grandes bilheterias, inclusive levando multidões às salas de cinema brasileiras na época.

Trata-se de uma produção espanhola, que foi rodada tanto na Espanha quanto na Itália, e dirigida pelo húngaro Ladislao Vajda. Em preto e branco e com produção modesta, o longa apresenta a história do menino Marcelino, que é abandonado ainda bebê na porta de um mosteiro, e que, após frustradas tentativas dos frades de entregá-lo para adoção, acaba sendo criado por 12 monges sem uma mãe (e o número de monjes é um mais que evidente recurso de interdiscursividade com os apóstolos de Jesus). Marcelino cresce como um menino levado, sempre fazendo travessuras e levando todos no mosteiro à loucura com sua desobediência e imaginação, até tornar-se o protagonista de um milagre que marcará para sempre o vilarejo espanhol onde se passa a história.

Contudo, o filme é um bocado esquemático em vários sentidos. A trama central é apresentada no início por meio de um flashback, onde muitos anos mais tarde, um padre conta para uma menina enferma na cama sobre a lenda de Marcelino – o que pode ser justificável pelo caráter de fábula infantil desta história. O decorrer do enredo conta com certa trivialidade, como no fato de recorrer ao manjado cacoete do recém-nascido abandonado em uma porta (já temos aqui dois clichês em comum com O Curioso Caso de Benjamin Button), os dilemas para encontrar uma família, o surgimento de um vilão ganancioso e malvado, as travessuras de Marcelino típicas de qualquer menino e comum, e por aí vai. O filme tem uma duração comedida, porém se entende por bastante tempo em uma trama que só encontrará o seu ápice e seu grande significado no fim, podendo afugentar os mais ávidos por agilidade e acontecimentos no esquema de “causa e feito”, tão presentes no grande cinema mainstream dos dias atuais, principalmente no americano.

Mas ainda que seja um tanto formulaico e ausente grandes atributos cinematográficos, esta adaptação para o cinema da história presente no livro homônimo de José Maria Sanchez Silva é inegavelmente comovente. É difícil não se deixar contagiar pelo carisma do menino Marcelino, interpretado pelo ator Pablito Calvo, que virou estrela internacional graças a este papel (pelo qual ficou marcado pela vida toda), vindo inclusive visitar o Brasil. O filme é ao seu modo um marco na cinematografia melodramática da Europa, um drama sentimental e religioso que convoca na memória do espectador imagens tão variadas que vão desde o arquétipo do menino herói até passagens bíblicas de provações e redenções.

Desse modo, a história evoca ideias narrativas como aquelas em que são baseadas no arquétipo do “escolhido”, do homem que veio à Terra com uma missão especial a ser cumprida; a do menino ingênuo e destemido que, por sua pureza, alcança as maiores façanhas consideradas impossíveis aos homens comuns, como em algumas lendas nórdicas e no personagem Ziegfried, da obra de Richard Wagner;  a do menino que, nascendo de uma concepção misteriosa  e crescendo em uma ambiente sacro e de muita religiosidade, torna-se um mártir, um sacrifício em nome de todos, de certo modo como aconteceu na vida de Jesus Cristo.

O curioso na história de Marcelino, no entando, é o modo como às avessas vai ao encontro de sua religiosidade e espiritualidade. Se na Bílbia Adão e Eva perderam o contato com Deus em decorrência de sua desobediência em provar do proibído, em Marcelino Pão e Vinho a moral é inserida por outro viés: o protagonista encontra Deus e sua missão justamente ao contrariar os ensinamentos do monjes e ir até o sotão proíbido, sucumbindo à tentação da curiosidade. Subvertendo a moral do livro de Gênesis, é graças ao modo errante com que o menino leva a vida, aliado ao seu caráter prodigioso, que lhe será possibilitado o encontro de seu verdadeiro caminho.  Cinematograficamente, alguns dos planos finais do filme são de uma força extrema: é interessante notar como é forte e poderosa a imagem de Cristo, ou de um crucifíxo, na na grande tela do cinema. Qualquer seja a religião do espectador, seja ateu ou cristão, e inegável o poder imagético do maior símbolo presente na cultura do ocidente nos últimos dois mil anos.

Se este filme marcou a infância de tantas pessoas no mundo, inclusive inspirando muita gente a ingressar no seminário, o Brasil encontrou a sua resposta para este filme espanhol em 1961 com o longa de Lima Barreto chamado A Primeira Missa. Neste raro filme nacional, embora também um grande sucesso na época, um menino chamado Bentinho (e que nome sujestivo!)  encontra sua vocação para o sacerdócio e a vida em devoção a Deus em meio à vida solitária e hostil.

Filmes como esses não são mais feitos, e histórias assim no cinema de hoje fariam muito pouco sentido no mundo atual. Embora tenham sido grandes sucessos do cinema, não figuram mais na lista dos melhores filmes, tampouco viram fenômeno cult. E é por essa razão que sua exibição é interessante: evocam um mundo nostálgico, relembram certa ingenuidade que o mundo, a infância e até mesmo o cinema perdeu com o passar dos anos.

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