Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Woody Allen em essência e seu melhor trabalho na querida e imortalizada Nova York.

9,0

Certo dia, indo a uma exposição de fotografias no Museu de Arte Moderna em Nova York (MoMa), um roteirista de televisão encontra um amigo acompanhado da amante, uma jornalista “insaciável” que achava “superestimados” Gustav Mahler, F. Scott Fitzgerald, Isak Dinesen, Carl Jung (!), Norman Mailer, Lenny Bruce, Heinrich Böll e até mesmo Walt Whitman e Ingmar Bergman. Ela acabara de escrever um artigo sobre o artista plástico Sol Lewitt numa revista de arte chamada Insight, cujos diretores 'eram uns idiotas impregnados do radicalismo de 1930'. O roteirista estava acompanhado de sua nova namorada de 19 anos (ele tinha 42) e detestou a jornalista de início. Essa é só uma das várias clássicas cenas desse que é considerado um dos melhores (se não o melhor) filme de Woody Allen, Manhattan, feito em 1979 com a musa do diretor na época, Diane Keaton, quando Allen ainda fazia bom cinema.

Para quem ficou perdido no parágrafo acima com a enxurrada de citações artísticas, ficará muito mais no filme, que entremeia toda essa erudição com um amontoado de piadas rápidas no gatilho sobre religião, filosofia, judaísmo, dinheiro, a cidade de Nova York e, principalmente, os relacionamentos humanos numa época de desintegração. Exigente, culto, sofisticado, engraçado, estilizado, Manhattan, o filme, foi feito por um artista no auge da sua forma e talvez seja sua obra mais radical, em preto-e-branco e apenas com músicas de George Gershwin.

Manhattan foi esnobado no Oscar (ganhou apenas duas indicações, melhor roteiro e atriz coadjuvante, Mariel Hemingway, sem vitórias). Fora dos EUA, um sucesso só: no Bafta (o equivalente na Inglaterra) foram 10 indicações, sendo duas vitórias, melhor filme e roteiro. Foi melhor filme estrangeiro no César francês, na Alemanha e na Itália. O motivo é simples: dois anos antes, Allen havia faturado melhor roteirista, diretor e filme por Annie Hall (Keaton, melhor atriz), de forma que Manhattan foi visto como uma continuação ou uma simples variação de (no pavoroso título brasileiro) Noivo Nervoso, Noiva Neurótica.

No entanto, Manhattan é superior à Annie Hall, mas não existiria sem o primeiro. Annie Hall lhe deu o sucesso, o dinheiro, os meios e até mesmo a licença de ir mais longe que o diretor precisava para conseguir fazer um filme tão forte como Manhattan – diz o IMDB que é seu maior sucesso comercial. A abertura é também clássica : o roteirista tenta escrever a primeira página de um futuro livro sobre a cidade (ele tentou primeiro sobre a mãe, que se chamaria A Sionista Emasculada, mas não conseguiu terminá-lo). Vai descrevendo-a (tenta pelo menos três vezes, sem sucesso), enquanto Allen diretor mostra a cidade perspassada pelo alucinante preto-e-branco de Gordon Willis e Rapsody in Blue, de Gershwin, interpretada pela Filarmônica de Nova York sob regência do maestro indiano Zubin Mehta – as imagens e a música resumiriam para sempre a cidade daí em diante.

Allen tentou fazer cinema de arte a vida toda. Imitou Bergman em A Outra e Interiores, Fellini em Tudo Que Você Queria Saber Sobre Sexo Mas Nunca Teve Coragem de Perguntar, Orson Welles e vários outros, mas conseguiu em Manhattan, ao seguir a velha tradição americana do cinema, ser ele mesmo e, ao mesmo tempo, tão profundo e belo quanto seus ídolos, com a vantagem do humor, sem cair nos excessos do pós-modernismo (ele era muito culto para isso) de ficar fazendo citações sem cessar e sem nada acrescentar.

Allen disse que escreveu o roteiro escutando as músicas de Gershwin. As letras não estão no filme, mas estão na base de cenas principais. Allen, de talento infinito, trocou a inocência de algumas passagens pelo seu humor rascante. Assim, quando pela primeira vez eles ficam juntos, justamente passeando com o cachorro dela, escuta-se ao fundo "Someone to Watch Over Me" (There's a saying old says that love is blind/Still we're often told "seek and ye shall find"), eles sentados debaixo da ponte (cena magnífica), e termina maravilhosamente com "Embraceable You" (Lady, listen to the rhythm of my heartbeat/and you'll get just what I mean).

Assim, enquanto o roteirista estava em guerra com uma das duas ex-esposas (Meryl Streep), que escreveu um livro sobre a vida conjugal dos dois (citação da mulher de J. D. Salinger, Sylvia, que acabara de publicar na época um relato assombroso sobre o casamento dela com escritor do clássico O Apanhador no Campo de Centeio), a jornalista descrevia o atual namorado como um 'gênio' que, infelizmente, passou diretamente de 'Havard para Beverly Hills' (Hollywood) e, na sua obsessão por sexo e morte, lembrava 'Theodor Reik com um pitada de Charles Manson'.

Eles vão ao Studio Cinema ver uma sessão dupla de Os 47 Samurais, de Hiroshi Inagaki, e Terra, de Alexander Dovzhenko. Depois, dançam no apartamento ao som de, novamente, "Embraceable You". Ao ver numa livraria a obra da ex-mulher, na trilha toca "Oh, Lady Be Good" (Can't go on like this/I could blossom out I know/With somebody just like you) – o livro faz sucesso e acaba virando filme. Ao ver a adolescente indo embora para Londres, "But Not For Me" (They're writing songs of love,/ but not for me./ A lucky star's above, /but not for me).

Manhattan tem a estrutura dos outros grandes filmes de Allen: tramas paralelas bem fundamentadas, que fazem brilhar os atores coadjuvantes, diálogos perfeitos, timming inigualável, sofisticação e humor cortante. Seus comentários ácidos sobre a sociedade e seu tempo fazem parte da moldura, gerando todo um conjunto coeso e único. Foi assim em Crimes e Pecados. É assim em O Misterioso Assassinato em Manhattan. Annie Hall também.

Talvez o fato de Woody Allen ter decepcionado tanto nos últimos filmes seja porque ele seguiu os novos tempos. Não envelheceu, portanto, apenas se adaptou. Tornou-se cínico, as piadas são agora sobre temas bobos, os diálogos são superficiais, as celebridades que se matam para estar nos seus filmes não são os grandes coadjuvantes de outrora. A Nova York agora é tão cosmopolita que seus filmes são passados em outras capitais internacionais. Fez várias comédias tão medíocres quanto os programas de televisão que ele detestava fazer. Se, quando saiu da TV, foi ao cinema pois ambicionava ir mais longe, mais fundo, hoje, na penúria que está o cinema, talvez seria melhor que Allen voltasse à TV e fechasse o ciclo. Sua querida NY, no entando, estará imortalizada em celulóide, no baita cinemascope que ele a filmou, na época em que cinema ainda rimava com diversão de qualidade.

Comentários (1)

Alan Nina | terça-feira, 19 de Fevereiro de 2013 - 10:46

Parabéns pelo texto!

Faça login para comentar.