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Críticas

Cineplayers

Para ambições pequenas, avaliações pequenas.

5,0

Na metade do Século XX, a televisão foi anunciada como a invenção que acabaria com o cinema. Em resposta, a sétima arte começou a fazer das tripas coração para se posicionar de forma diferente para o grande público: espetáculos grandiosos, produções épicas, formato cinemascope, som dolby-estéreo etc. No entanto, é interessante notar que, ao mesmo tempo que tentou se distanciar de seu suposto carrasco, o cinema sempre nutriu uma certa curiosidade pelo ambiente televisivo, em especial sobre os programas jornalísticos. Não é por coincidência, portanto, que, de tempos em tempos, uma nova obra surge com essa temática. Elas podem variar dos filmes clássicos [Rede de Intrigas (Network, 1976)], dramas de denúncia [O Informante (The Insider, 1999)], comédias rasgadas [O Âncora (Anchorman: The Legend of Ron Burgundy, 2004)), comédias-romanticas [Nos Bastidores da Notícias (Broadcast News, 1987)], romances açucarados [Íntimo e Pessoal (Up Close & Personal, 1996)], e filmes políticos [Boa Noite, e Boa Sorte (Good Night, and Good Luck, 2005)]. Independentemente do gênero e da proposta que defendem, o que eles têm em comum é a relevação dos bastidores da notícia, cujas verdades quase sempre são sonegadas do público comum e leigo. Sem qualquer ambição maior a não ser divertir o espectador, Uma Manhã Gloriosa é o mais novo integrante desse grupo.

A narrativa começa nos apresentando a protagonista. Seu nome é Becky Fuller (Rachel McAdams). Na primeira sequência, ela está chegando a um restaurante. Tem um almoço marcado com um rapaz (Noah Bean). Eles se cumprimentam. Percebe-se que é a primeira vez que estão se vendo. Mas Becky está tensa, quase sem fôlego. Antes mesmo que o casal consiga trocar duas palavras, seu celular toca. Ela fica sem jeito. Não sabe se atende ou se dá atenção ao seu possível pretendente. Mesmo sem olhar para o aparelho, ela sabe que do outro lado da linha seu chefe a aguarda. Contato feito, seus problemas persistem. Ela parece estar descalibrada para encontros amorosos. Quer se mostrar simpática. Promete que não atenderá a mais nenhuma ligação. Fala compulsivamente. Gesticula em excesso. A conversa a dois vira um monólogo. Quando seu parceiro encontra um vão para falar, o celular de Becky volta a tocar. Ela se retira da mesa. Ao voltar, o rapaz já não está mais lá.

Não é à toa que Becky perdeu o traquejo com os homens. Seu nome é trabalho. Ela é produtora do programa matutino Good Morning New Jersey, o que a obriga a sair da  cama à 1h30min, quando muitos dos seus vizinhos ainda estão voltando da balada. Ao chegar na estação, sua rotina é definir as pautas e distribuir as tarefas entre os âncoras e repórteres. Ela leva a sério sua profissão. Para Becky, esse tipo de programa oferece aos espectadores, a um só tempo, noticiário, entretenimento e instrução. E é preciso ralar muito para que as pessoas se sintam estimuladas a receber tanta informação em pleno horário do café da manhã.

No entanto, quando a emissora se vê em dificuldades financeiras, essa dedicação não é suficiente para segurar seu emprego. Ela dispara currículos e telefonemas para todos os lados. Depois de vários "nãos", seu ponto de virada vem com o convite de Jerry Barnes (Jeff Goldblum), um dos executivos da rede IBS, de Nova York, que está atrás de sangue novo para comandar seu deficitário jornal da manhã Daybreak.

Os desafios que Becky terá que enfrentar não serão poucos. De início, ela se depara com uma equipe desmotivada e meio sem rumo. O casal de âncoras formado por Collen Peck (Diane Keaton) e Paul McVee (Ty Burrell) não se entende. Ela tem acessos de estrelismo. Ele, além de se achar o centro do mundo, não tem qualquer cerimônia em flertar com qualquer funcionária que lhe dirija a palavra.

Becky decide chegar de sola e mostrar quem manda na empresa: no lugar de McVee, contrata o veterano Mike Pomeroy (Harrison Ford). Outrora uma lenda no jornalismo, vencedor de diversos prêmios, Pomeroy é o tipo de profissional que deixa desafetos por onde passa. Um deles é Adam (Patrick Wilson), o bonitão da emissora, para quem Pomeroy é umas das três piores na face da terra. A idéia de Becky é ousada e arriscada. Mal comparando, seria como se a Rede Globo chamasse o Cid Moreira, ex-âncora do Jornal Nacional, para dividir a apresentação do programa Mais Você, ao lado da Ana Maria Braga. Mas o tamanho do ego de Pomeroy é maior do que a própria emissora. Para ele, sua fama o exime de embarcar em reportagens que o exponha ao ridículo. E nem se discuta a quem cabe o "bom-dia"que marca o encerramento do show. Becky terá que administrar essa fogueira de vaidades e, como se não bastasse, elevar os níveis de audiência num prazo de apenas seis meses.

Uma Manhã Gloriosa trabalha na chave da comédia-romântica. Em outras palavras, a saga de Becky é contada de uma forma propositadamente leve e milimetricamente açucarada. As piadas e o romance surgem em doses equilibradas e alternadas. É como se o roteiro avisasse a hora de rir e a de torcer pelo beijo do casal central. A ordem é entreter, sem ofender.

Essa opção pela zona de conforto faz com que o filme perca a oportunidade de abordar um dos temas pelos quais ele apenas resvala: a função social da televisão e a qualidade da sua programação. Esse objeto do qual não mais conseguimos nos separar, é o responsável pela educação e entretenimento de milhões de pessoas ao redor do mundo. Hoje, na condição de pai, me impressiona o poder de sedução e de hipnose que ela exerce sobre meus pequenos. Sua influência no mundo moderno – comparada com o que a internet representará para as gerações seguintes – é tanta, que as pessoas que fazem da televisão seu sustento, devem necessariamente refletir sobre o tipo de mensagem que veiculam.

Esse aspecto surge de passagem em Uma Manhã Gloriosa. A certa altura do filme, Mark Pomeroy se recusa a fazer determinada reportagem, porque ela não estaria à altura do seu talento. Há um choque de idéias entre ele e sua chefe Becky. Ela defende que a televisão deve unir informação com diversão. Ele, por sua vez, diz que o programa em que trabalham só transmite lixo. De fato, Becky só consegue elevar a audiência no momento que vulgariza sua grade. Para segurar o interesse do espectador numa reportagem sobre um novo medicamento, é necessário que o repórter apareça de quatro recebendo a aplicação da injeção. Para que o público sinta a sensação de estar dentro de uma montanha russa, a câmera precisa filmar o desmaio desse mesmo repórter em um dos carrinhos. Quem está com a razão? Becky ou Pomeroy? É possível instruir e educar sem aborrecer o espectador? Informação e entretenimento são conceitos que se excluem? O acesso às camadas menos abastadas da população significa necessariamente que se deve baixar o nível da qualidade da mensagem que veiculam? Em última análise, os números do IBOPE justificam a explicação dos fins pelos meios?

Uma Manhã Gloriosa foge como diabo da cruz dessas indagações. Deve-se reconhecer que o não enfrentamento dos problemas é até coerente com a proposta do filme de ser uma diversão leve e passageira. Particularmente, eu gostaria de ver mais ousadia. Ao menos, as condições para o debate estavam propícias. Comédia é também sinal de inteligência.

Na condição de comedia-romântica, o filme se sai um pouco melhor no primeiro gênero do que no segundo. Vulgares ou não, o fato é que as sequências em que o repórter passa a servir de cobaia das suas próprias matérias são efetivamente engraçadas. Funciona também a cena da jornalista que adormece em plena apresentação ao vivo do jornal matutino (o que desfaz a ideia do glamour e de felicidade que rodeia esses programas). Já no quesito romance, Uma Manhã Gloriosa segue o caminho convencional e previsível de encontros e desencontros e reencontros.

O elenco tem problemas. Parte da responsabilidade deve ser creditada aos atores – em especial a Harrison Ford – e parte ao roteiro. O personagem principal é defendido por Rachel McAdams. De coadjuvante em Meninas Malvadas (Mean Girls, 2004), Penetras Bom de Bico (Wedding Crashers, 2005) e Tudo em Família (Family Stone, 2005), ela ganhou uma chance maior ao aparecer em Sherlock Holmes (idem, 2009). Hollywood parece ter gostado do que viu e resolveu lhe dar a oportunidade de protagonizar uma produção tipicamente de estúdio. Se seu rosto não é particularmente belo (Rachel lembra a brasileira Paola Oliveira, que é mais bonita), ela compensa com carisma e timing para comédia. Sua Becky demonstra uma verdadeira garra pela profissão. Ela realmente acredita no que faz, no significado e na influência que o programa exerce sobre os seus espectadores. McAdams supera, inclusive, as limitações que lhe foram impostas pelo roteiro, que a constrói como uma moça ansiosa, atrapalhada, que receia não agradar seus ouvintes. Não foi por acaso que seu encontro no restaurante, no início do filme, fracassou. Ao falar sem parar, Becky não seduz, mas sim assusta. Por isso mesmo, é difícil acreditar que o personagem de Jeff Goldblum lhe daria a vaga de produtora-executiva, já que na entrevista ela comete os mesmos atropelos.

O roteiro também prejudica Diane Keaton, cujo personagem é ao mesmo tempo mal desenvolvido e mal aproveitado. Na sua primeira aparição, quando ela é apresentada à Becky, Diane nos dá a impressão de ser uma chefe rígida, que não se importa com os sentimentos dos seus subordinados. A relação entre elas me lembrou o duelo entre Meryl Streep e Anne Hathaway em O Diabo Veste Prada (The Devil Wears Prada, 2006), cujo roteirista, não sem querer, é o mesmo de Uma Manhã Gloriosa. Mas à medida que o tempo vai passando, Diane vai se tornando uma mulher compreensível, aberta às novas idéias de Becky, e sempre disposta a se doar em nome do sucesso do programa. Essa mudança brusca de personalidade afeta diretamente a credibilidade da personagem junto ao espectador.

Quanto a Harrison Ford, alguém precisa lembrá-lo que comédia, definitivamente, não é o seu forte. Seis Dias, Sete Noites (Six Days Seven Nights, 1998) e Divisão de Homicídios (Hollywood Homicide, 2003) estão aí para provar. Em Uma Manhã Gloriosa, ele trabalha num registro próximo ao que já fizera em Sabrina (idem, 1995), um estilo rabugento, ranzinza, teimoso, que mais grunhe do que fala. Ele está particularmente mal na sequência em que Becky o convida pela primeira vez para ser o âncora do programa. De cara amarrada, com uma espingarda na mão, Ford erra completamente tom. No fundo, é como se Ford pensasse exatamente do mesmo jeito que o seu personagem. Ele parece ter a consciência de que Mike Pomeroy está à léguas de distância dos tempos de Indiana Jones, Rick Deckard, Han Solo, John Book ou até mesmo do Dr. Richard Kimble.

Completam o elenco os sempre confiáveis John Pankow, como o amigo que recebe Becky na rede IBS, Jeff Goldblum, numa performance agradavelmente relaxada e minimalista, e Patrick Wilson, criminosamente desperdiçado.

O filme é dirigido pelo sul-africano Roger Michell, cineasta de traço impessoal, daqueles que dirige o material que cair em seu colo. Sua carreira abriga títulos distantes entre si, como o romance Um Lugar Chamado Notting Hill (Notting Hill, 1999), e o suspense Fora de Controle (Changing Lanes, 2002). Há espaço também para trabalhos mais sérios, como Recomeçar (Mother, 2003) e Amor Para Sempre (Enduring Love, 2004). O próprio Michell sabe das suas limitações e, por isso mesmo, sua principal característica é tão somente servir ao roteiro. Não é diferente em Uma Manhã Gloriosa. É interessante o primeiro plano do filme, fechado, numa janela 4:3, própria da televisão, e que aos poucos vai se expandindo para o formato widescreen de cinema. É como se Mitchell anunciasse o conteúdo e a forma da história que ele está prestes a contar. No mais, deve-se ao diretor o ritmo adequado da narrativa e o entrosamento dos atores. No fundo, em produções de estúdio como essa, em que os executivos entram na sala de montagem sem pedir licença, é difícil afirmar o quanto da mão do cineasta está efetivamente impresso no resultado final.

Uma Manhã Gloriosa é o que é. Uma diversão leve, comportada, amistosa e fácil de se assistir. Nada contra um filme querer ser pequeno. Mas nada mais justo que para ambições tímidas, avaliações idem.

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