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Mangrove

(Mangrove - Small Axe, 2020)
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Críticas

Cineplayers

A resistência da imagem e do ritmo

10,0

Num dos ensaios mais célebres de Leopold Senghor denominado a Estética Negro-Africana, saltam aos olhos de qualquer leitor - em especial o cinéfilo - o que é definido como os dois traços fundamentais da estética negro-africana: imagem e ritmo. Senghor nunca escreveu sobre cinema, mas certamente encontraria seus pensamentos registrados em Small Axe, antologia fílmica assinada pelo inglês Steve McQueen sobre a comunidade caribenha de Londres de meados dos anos 60 a meados dos anos 80.

No primeiro dos filmes, temos a oportunidade de conhecer a história de um dos espaços de resistência mais importante da História da comunidade negra britânica. Inserido num período de repreensão total de qualquer prática cultural que fugisse às diretrizes da rainha, Mangrove vivia no coração de Nothing Hill em erupção criativa gastronômica, artística e evidentemente política. McQueen escolhe começar o seu relato com a fibra do machado, a fortaleza formada na junção da madeira com o ferro dá o poder necessário para o abraço da imagem e do ritmo desenhar um filme que substantiva a sua essência: resistir.

Os Swing Sixties londrino de Blow-Up (1966) dominavam a tendência de comportamento no mundo que parava para ouvir Os Beatles e os Rolling Stones, o estilo formava culturalmente e politicamente uma cidade que se vestia de várias paletas, mas devia ter apenas uma cor de pele - e não era a de Sidney Poitier em Ao Mestre com Carinho (1967), de James Clavel. Mangrove (2020) conta em preciosas imagens panorâmicas como a cidade de Londres crescia em ritmo vertiginoso, força diretamente proporcional à utilizada para brutalizar os seus filhos bastardos da colonização.

A obra centra-se em demonstrar como o restaurante de Frank Crichlow (Shaun Parkes) lutava bravamente para manter-se de pé diante dessa força esmagadora. Briga desleal, já que a grande árvore do sistema conservador britânico usava do racismo estrutural para empurrar os de outra cor para fora, além da violência do racismo físico para matar a dignidade de qualquer homem ou mulher daquela comunidade que resolvesse caminhar com o nariz erguido diante da humilhação do existir em sua própria casa como intruso.

McQueen é filho desse tempo, leitor e discípulo de Stuart Hall, arma seu pequeno machado através da representação do outro inserido nesse crescimento. Escolhe mostrar a diferença não como exceção, ou muito menos como mero espetáculo, mas sim como parte essencial da narrativa, dona de suas próprias raízes - como um verdadeiro manguezal - desenvolvida esteticamente tendo o ritmo como principal marca da construção imagética.

O filme é absolutamente político, peça fundamental e histórica da resistência negra como representação. Ao colocar em pauta as problemáticas do Black Panther britânico trazido por Altheia Jones-LeCointe (Letitia Wright) abraçando as reflexões de Darcus Howe (Malachi Kirby), virtuoso escritor (sobrinho de C.R.L James autor de Os Jacobinos Negros), dentro do restaurante de Chiclow propõe um relato cinematográfico único sobre o pensamento negro moderno. Entretanto, isso não se dá apenas pelo conteúdo inflamável. As imagens parecem dançar de acordo com o ritmo, os diálogos entre Howe e o dono do Mangrove sobre sua função social como líder orgânico dentro daquela comunidade - gostasse ele ou não daquela posição de liderança - são absolutamente memoráveis.

Quando os planos não dançam entre si, rebolam. Na sequência do carnaval em Nothinhg Hill, McQueen consegue traduzir o ritmo da marimba afro-caribenha através dos rostos de felicidade impressos em primeiros planos raríssimos no cinema. O momento mais lindo e potente do filme não se dá no tribunal ao acerto de contas com o policial fascista, mas sim quando vemos o esplendor daquela comunidade em plena celebração. A diáspora negra em seu apogeu estético de resistência: misturada, incontrolável, rebelde, incatalogável e absolutamente irresistível.

Apesar do arcabouço intelectual por trás da obra, e de todo o delírio crítico por trás da série, o próprio diretor fez questão de trabalhar com a BBC de Londres na produção e exibição, almejava o máximo alcance de público possível, e em diversas entrevistas afirmara que imaginava tudo para o deleite da sua vó na poltrona do sofá.

O groove afro-caribenho sacode o manguezal enterrado no coração de Londres, o machado afiado corta a árvore branca, enquanto o mangue resiste ampliando suas raízes, balançando no reggae de Bob Marley ou quebrando tudo no ritmo dos atabaques do carnaval. Mangrove (2020) é sobre ser, mesmo que antes venha a necessidade de existir.

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