Dentre todos estes anos em que se estabeleceu como um exímio contador de histórias não necessariamente sempre vinculadas ao horror, James Wan criou pra si não a identidade de um autor, mas de um artesão que molda-se às necessidades de suas narrativas, seja na trama policial do pouco lembrado Sentença de Morte, no delírio da ação pela ação em Velozes e Furiosos 7 ou na grandiloquência fantasiosa do universo de Aquaman; e, aliás, é dentro do enorme sucesso comercial desse último que existe grande parte da justificativa da Warner para dar sinal verde a Maligno, algo que Wan visivelmente gostaria de ter feito desde o início da carreira, e só agora o tamanho de seu nome permitiu.
Digo isso pois, Maligno, tal qual como foi acertadamente vendido pelo diretor em entrevistas, parte do princípio da colagem - é um passeio não só pelas mutações que o cinema de horror passou pelos últimos, sei lá, 40 ou 50 anos (talvez até mais, já que visivelmente também há influência dos filmes de casas assombradas dos estúdios Hammer), mas como o atestado de Wan para tudo que lhe influenciou nos seus moldes até então, sejam narrativos ou imagéticos. É como se Maligno fosse a comprovação de que Wan tanto pode ser o artesão que a indústria precisa, quanto um autor com suas próprias referências diretas e indiretas para dar vida a algo unicamente seu. O que dizer de um cineasta que alcança tal poder na indústria excessivamente controladora de hoje, não é?
Como a proposta de Wan é oferecer essa salada "desordenada", mas muito objetiva de referências e inspirações, o diretor se junta ao rol dos novos nomes como Mike Flanagan, Jordan Peele e, em certa escala, M. Night Shyamalan como um autor reverencial ao que lhe forma sua identidade, e de um ponto de partida excessivamente simples onde uma mulher, Madison (Annabelle Wallis, presente nos dois primeiros filmes da boneca Anna Elle), depois de passar por um evento traumático com o marido violento, começa a ser perseguida por uma presença fantasmagórica em sua própria casa. O roteiro bastante nauseante de Akela Cooper (queria ter sido uma abelinha pra ver como foi vender esse script para o estúdio) encontra efeitos quase transcendentais nas contribuições de Wan na direção, que mais do que formar sua identidade em cima de todo o seu compêndio sobre o que era/é o cinema de horror, traz um sentido próprio fascinante para o que, em uma definição mais banal, se enquadra confortavelmente no melhor do gênero "mas que p*rra é essa que tá acontecendo?!"
E lançada a sua isca para o público, Wan conduz, sem maiores pudores, a sua narrativa para algo que inicialmente se estabelece nos cenários de sanatórios, com toda aquela predominância do verde e do vermelho que lhe aproximam de Mario Bava e da estética giallo, transita para um tom slasher Carpentiano que inesperadamente se cruza no j-horror, e que não demora muito a se embrenhar num quê bastante DePalmiano de zooms e derramamento de sangue, até culminar num body horror que remete, sem qualquer sutileza, ao David Cronenberg de filmes como A Mosca e Videodrome.
Em dado momento, a amontoação é tamanha que Maligno passa a abandonar seus traços narrativos mais "lógicos" e se embrenha no simples deleite da encenação imagética, e este é um ponto de virada onde esse experimento de Wan cresce com uma força assustadoramente descomunal, onde todos esses códigos de gênero dão lugar ao "pão e circo" mais fascinante a surgir no gênero em muito tempo. O senso fantasioso do diretor cabe como uma luva a partir deste ponto, justificando a reviravolta farsesca e radical que, apesar de previsível (este que vos escreve adivinhou aquele e outros twists menores a anos-luz de distância), está ali pra formar toda a epopeia exuberante e tresloucada de Maligno, e desde já, a sequência na prisão (que ponta bem-vinda de Zoe Bell!) está entre o houve de mais catártico e delirante em 2021.
Quando a decisão de "a única regra é que não há mais regras" acontece dentro do filme, os próprios desdobramentos oferecem novas possibilidades do roteiro ampliar seu discurso - pois sim, há um discurso - sobre amor fraterno e, pasmem, até mesmo sobre empoderamento feminino. Basta reparar na melodramática e breguíssima cena final, enquadrando as três principais figuras femininas do filme, ambas atravessando um quê de traumas e redescobertas do passado que indicam novos contornos para suas vidas a partir dali. Inusitado e bastante efetivo.
Se falta algum polimento em Maligno, ele se pede necessário em poucos segmentos, na irritante detetive forense apaixonada pelo policial Kekoa Shaw (esse nome, rsrs...) ou na policial de Michole Briana White, muito mais um adereço que está ali somente para contradizer a protagonista do que uma presença realmente funcional. No que mais lhe concerne, Maligno acha sua potência justamente no que não lhe é polido, nos maneirismos barulhentos de câmera e som, no escapismo estilizado de toda sua encenação (vale lembrar aqui de como Wan subverte seus travellings costumeiros, agora posicionados de cima), e em todo seu antinaturalismo elaborado com bastante autoridade por um artesão que, enfim, se revela um autor dos mais potentes. Maligno é Cinema com C maiusculo.
Concordo que seja Cinema com C, mesmo com suas falhas gritantes, pelo menos é um cineasta que tenta (tem liceça e moral pra isso) algo diferente. Fora as homenagens a Hitch em alguns enquadramentos.