Um filme que faz o espectador pensar e se maravilhar. Obra-prima!
Alguns filmes não permitem meias interpretações. Ou você gosta ou não gosta. Ou você embarca na idéia e se dispõe a entendê-lo ou ele lhe parecerá um emaranhado de situações desconexas. Esses filmes são assim porque seus realizadores decidiram, em algum momento, serem mais fiéis ao cinema em si que ao público. Muitos cineastas, sobretudo os comerciais, querem primordialmente agradar ao público. A história tem de estar fácil de entender, deve estar enquadrado num gênero específico e por aí vai. É assim que muitas vezes os filmes descambam para clichês e fórmulas. Não que querer agradar ao público seja errado, muito pelo contrário. É extremo – e tremendamente errado – dizer que um filme comercial vai ser sempre previsível e ruim. E mesmo quando o cineasta decide ser mais fiel a uma idéia, a uma experiência cinematográfica nova, o público não pode em hipótese alguma ser preterido, pois ele é o fim maior de qualquer filme. Porém, certos filmes mais ousados exigem um espectador diferenciado, disposto a embarcar na experiência. Quanto mais radical a proposta, mais específico será público. E é aqui que se forma a tal divisão entre os defensores e os detratores do filme.
Magnólia é um caso típico dessa situação. Ame-o ou odeio-o é quase uma regra. Segundo trabalho do diretor e roteirista Paul Thomas Anderson, Magnólia é ousado sim, até certo ponto temerário, mas admirável dentro de sua proposta. É ousado porque, após seu primeiro e bem sucedido filme Boogie Nights – Prazer Sem Limites que, apesar da realização pouco convencional, não quebra com nenhuma estrutura pré-estabelecida, ele decide romper convenções e fazer um filme de narrativa recortada e complexa. É temerário porque, mesmo já tendo sinalizado em Boogie Nights ser um conhecedor exímio de cinema, a possibilidade de errar era grande. Ser visionário implica correr riscos. Se o resultado desse errado seria seu sepultamento direto. Mas é admirável porque, graças a esse ímpeto até arrogante, ele acerta e produz um clássico dos anos 90, um filme marcante, profundo, denso, enfim, cheio desses adjetivos que classificam experiências cinematográficas que valem a pena – valem a pena, repito, a quem se dispõe a entendê-lo. E mesmo esses podem não gostar, mas saberão porque não gostaram, ao contrário de outros que dirão que não gostaram porque o filme é simplesmente “sem sentido”.
Bem, mas vamos ao filme propriamente dito. Magnólia acompanha um dia na vida de várias personagens, em histórias paralelas que, vez ou outra irão se cruzar. Tom Cruise é o guru sexual Frank Mackey que ganha a vida ensinando homens a aumentar a sua auto-estima perante as mulheres; seu pai, o milionário Earl Patridge (Jason Robards) está em estado terminal e quer, a todo custo, reencontrar o filho com quem não fala há mais de dez anos; Linda (Julianne Moore) é madrasta de Frank, casou-se com Earl por dinheiro, mas agora, comovendo-se com a situação do marido, descobre que o ama e se afunda em antidepressivos. O enfermeiro Phil Parma (Philip Seymour Hoffman) também transita por esse núcleo e será a ponte entre Frank e Earl. Philip Baker Hall interpreta Jimmy Gator, espécie de Silvio Santos americano, que se descobre também em estado terminal em função de um câncer e, no limiar da vida, decide rever seu passado e retomar relações com a filha Claudia (Melona Walters) – agora drogada e sem rumo – a quem ele parece ter abusado quando criança. Stanley Spector (Jeremy Blackman) é um garoto prodígio que participa do programa de Jimmy Gator respondendo perguntas sobre cultura geral contra adultos e é explorado pelo pai. Donnie Smith (William H. Macy) ficou famoso quando criança participando também do programa de Jimmy Gator, mas agora, adulto, luta para se auto-afirmar e luta também contra a solidão. No meio de tudo isso, ainda temos o policial Jim Kurring (John C. Reilly) que se envolverá com Claudia. Ufa! A população de Magnólia é grande. E olha que aí só estão, digamos, os protagonistas. Nessa breve descrição, porém, se pode notar que as histórias não são tão descoladas assim e, todas têm uma temática mais ou menos parecida.
Magnólia é um filme longo – são mais de três horas de duração – porque, mesmo retratando um período curtíssimo na vida dessas pessoas, Paul Thomas Anderson preocupa-se em lhes dar complexidade e profundidade. Quase todas têm um passado, um fardo a ser carregado ou uma incongruência com a vida. Esse passado vai sendo apresentado aos poucos e com isso, vai se criando também a sensação de que todos ali estão à beira de um colapso – a sensação de que o acúmulo daqueles passados vai explodir a qualquer momento. É uma tensão incomum pra um drama, o que é muito bom. O maior mérito, como cineasta, de Paul Thomas Anderson é conseguir manter tantas narrativas simultaneamente e o acerto está nessa homogeneidade: todos parecem estar caminhando pra um mesmo ponto. Percebe-se que tudo aquilo vai desembocar em um clímax, o que gera expectativa e não torna o filme aborrecido – e aqui, temos uma grande e essencial preocupação com o público. Ainda dentro da condução de narrativas paralelas (que se penetram às vezes), tem-se uma evolução do talento demonstrado em Boogie Nights: são basicamente os mesmos recursos que corroboram a já vislumbrada competência e conhecimento de cinema de Anderson. Duas seqüências são marcantes no começo do filme: a abertura, que apresenta uma a uma as personagens, num exercício de montagem excelente e o plano-seqüência quando Stanley caminha pelos corredores do estúdio de TV. São recursos que tornam o filme agradável, instigante e até mais rápido.
Essa narrativa fragmentada não é invenção de Anderson, contudo. Robert Altman, por exemplo, ganhou notoriedade com esse recurso. Mas as “inventices” de Magnólia não param na estrutura. A cena mais comentada do filme e que, muitas vezes, sobrepõe-se a todo o resto, é a famosa chuva de sapos – recurso surreal e metafórico que surpreende muito quem assiste ao filme. O tal clímax, anunciado paulatinamente, se materializa dessa forma inesperada e que, de começo, gera confusão. Esse é o espaço que Anderson deixa para o público e a sua interpretação. O filme não se fecha em si mesmo: seu maior trunfo ou experiência reside aqui. O público, acostumado a receber tudo pronto, tem de se esforçar para encontrar um sentido, um fim. É por isso que é preciso “embarcar na viagem”. Desde o início, Magnólia convida a essa interação. Não é um filme pra se assistir passivamente. Tem de querer destrinchar o que está por trás de tantas personagens, acompanhá-las. Até certo ponto isso está light, mas, ao final, requer um complemento maior.
Por esse fator espectador, Magnólia tem inúmeras interpretações – assim como a chuva de sapos. Grosso modo o filme, a mim, fala do processo erro, arrependimento e redenção/perdão. Fala de como o egoísmo e o egocentrismo prejudicam a vida ao arrebentar os laços que nos unem aos outros. Vida, aliás, que é curta e totalmente sujeita a imprevisibilidades e acasos. Seriam esses acasos que o prólogo (que mostra supostos fatos reais, mas extraordinários) e a chuva de sapos representariam. Nossa vida deveria ser, portanto, uma revisão constante dos nossos atos. Mas esse não é de modo algum um pensamento fechado, mas sim subjetivo e individual. A coisa fica ainda mais confusa com a conotação religiosa que Anderson embutiu no filme. Lendo a crítica de PabloVillaça do site Cinema em Cena, descobri que são jogadas, em vários momentos, pistas que levam à conclusão de que a chuva de sapos seriam uma praga de Deus, um castigo. Eu, sinceramente, passei completamente despercebido quanto a isso ao assistir Magnólia. Por isso não vou entrar em detalhes. Só tenho a dizer que é um recurso interessante e que acrescenta um nível de elaboração ainda maior por parte de Paul Thomas Anderson. Mas mesmo sem isso o filme já seria instigante o suficiente.
Em resumo, Magnólia é uma cadeia muito bem amarrada de histórias que confluem para um final surpreendente. É fruto de uma mente que pensa o cinema desde sua elaboração mais ampla, como mensagem, discurso, apreensão de um estado de espírito; até os detalhes mais básicos de cena – que fazem toda a diferença – como a posição de uma câmera. Seu vocabulário é extenso: narração em off, trilha sonora, metáforas, coincidências. Nem cabe ficar entrando em detalhes demais, porque o filme abre a toda hora páginas novas. Pra quem se dispôs a entendê-lo e gostou, quantas vezes se reassisti-lo, mais coisas surgirão. É por isso que, mesmo achando que uma cena ou outra, uma situação ou outra, poderia ser suprimida, eu não afirmo que ela não é necessária. Talvez para outra interpretação ela seja importante. Talvez, para mim, ela poderá ser importante em outra ocasião em que eu assistir ao filme. Só um grande diretor consegue isso. Só alguém que pensa profundamente o cinema consegue isso. Paul Thomas Anderson conseguiu isso. Magnólia atinge a cada momento, sejam os objetivos que o próprio Anderson vislumbrou quanto outros que só o espectador foi capaz de lhe conferir.
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