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Críticas

Cineplayers

Sobre a sede de ser mais, de ser todos.

10,0
Um ano depois do rolo compressor que foi Que Horas Ela Volta?, reencontramos Anna Muylaert. A cineasta revelada em Durval Discos hoje ultrapassou a categoria de maturidade; Anna consegue pela segunda vez na carreira um feito raro, lançar consecutivamente dois grandes filmes. Mas diferente do combo Durval + Proibido Fumar, a relação estabelecida entre Que Horas Ela Volta e essa nova produção é de espelhamento e evolução. Sim, há espaço para evolução e Anna descortina um despojamento e uma atitude jovial que remete à sua estreia, deixando no fim de tudo uma absoluta simbiose para seus aparentemente diferentes olhares.

O certo distanciamento que hoje temos do fenômeno cultural que foi a narrativa de Val no ano passado nos coloca ainda mais seguros em observar o rumo que Anna escolheu para tal. Lá, talvez pela primeira vez Anna tomava pra si as rédeas da discussão pós-filme, deixando claro dentro do próprio roteiro as perguntas e também as respostas que moveram os debates a respeito dele; ao espectador restava o debate já colocado e explicado, porém vigoroso. Mãe... não: movido pela vontade de levar a reflexão principalmente para fora das telas, Anna abre mão das respostas e resolve mover o jogo cênico pra discussão aberta, do lado de fora do material.

E o faz com precisão, quase uma orquestração afinada perfeitamente. É um sem número de olhares e posicionamentos que o filme propõe, e já começa de cara com uma provocação geral. Afinal, o filme se vale da inspiração de um caso antigo de sequestro no Brasil (o menino Pedrinho, que nos anos 80 foi roubado de sua família e criado por outra mulher como filho legítimo, até a descoberta vir à tona e desmoronar as vidas dos envolvidos); pois bem, Anna tem a sacada de mestre de usar essa inspiração como apenas base do seu filme, desmembrando uma situação de inadequação etária, conflito de gerações e procura por uma identidade de gênero mais plural, tudo praticamente de forma tão natural e viável que não temos outra coisa a fazer que não abraçar Pierre. Ou Felipe.

Pierre vive com a mãe e a irmã, Felipe está desaparecido há 17 anos; eles são a mesma pessoa. Pierre é um adolescente procurando seu espaço, inclusive dentro de si. Expressa sua personalidade no olhar maquiado, na boca pintada, na bicicleta com a qual passeia, na banda que toca, no sexo, nas descobertas que ele faz questão de mergulhar, Pierre é a ponta de lança de uma movimentação Inerente ao jovem que se move rumo a curiosidade e tudo permite em nome dela. Quando for descoberto que também é Felipe, de classe social bem elevada a sua, filho de outros pais, irmão de outro exemplar da sua geração, e sua realidade ruir, é através da forma libertária de lidar com as transformações da sua idade que esse Pierre/Felipe vai se jogar. Tudo é permitido? Pra ele sim.

A forma como Anna jamais julga absolutamente nada nem ninguém desde o momento da descoberta é um dos traços de fascínio de seu filme, e perpassa toda a narrativa quase se tornando essa questão ela mesma A Narrativa. Diferente da forma como lidou com Que Horas Ela Volta, Anna sabe que tem um potencial de discussão explosivo em mãos e faz as mais inteligentes escolhas e observações, do ponto de vista do roteiro e também imagético. A nova parceria entre ela e a fotógrafa Barbara Alvarez não somente se mostra acertada e evoluída, como reconfigura o trabalho de ambas no ano passado ao apontar para pontos de ordem bem diferenciados aqui; tem um trabalho intenso do uso da luz, das cores e da paleta diferenciada nos dois momentos da vida de Pierre, ao mesmo tempo que explora espaços e sentimentos internos no sutil posicionamento das câmeras. Se vivendo sua vida de mentira víamos planos mais fechados nos personagens, apenas expandidos na liberdade que representa sua vida externa a casa e ao santuário que é seu banheiro, ao encarar o novo tudo se expande e abre para Pierre, até os focos de captação de imagem.

Narrativamente, além de subtrair questões não ligadas expressamente ao turbilhão interior de Pierre/Felipe, que já é um ser em ebulição independente da família que tem (e provavelmente vir do inconsciente essa sede por tudo ao seu redor), Anna encontra um contraponto precioso em Joca. Quando o filme parece assentado e resolvido, vem Anna dizer não apenas que um ser humano pode ser múltiplo, mas que existem seres múltiplos também entre si embora de gerações próximas. E isso desde a gênese da narrativa, quando Anna joga um recurso super requintado para debate exclusivo do público, que é a escalação de Dani Nefussi; acho de fato tão delicioso e surpreendente, um ponto de vista típico das histórias do Peter Pan quando entendemos a construção do Capitão Gancho, que não me interessa revelar. E isso também é fruto de uma montagem esplêndida, que brinca com as elipses e nos obriga a correr atrás de um filme que não vai nos esperar na sua ânsia de ter o mesmo frescor da juventude e da suavidade de Naomi Nero.

E o elenco como um todo tem pitadas (ou mais que isso) de genialidade. Luciana Paes e Helena Albergaria são cruciais em seus poucos momentos, Matheus Nachtergaele tem um papel dificílimo propositalmente esvaziado de escopo a princípio, pra explodir em cenas quase apavorantes dramaticamente. Todo esse conjunto pra mim no entanto parecem reféns de Pierre/Felipe e Joca. É no jogo distanciado entre a estupenda estreia de Naomi Nero e da inteligência cênica alcançada por alguém tão jovem quanto Daniel Botelho que 'Mãe Só Há Uma' desenha sutilmente seu rigor narrativo. E os transforma em vetores não apenas de um dos grandes filmes do ano, como também do nosso tempo.

Comentários (5)

Léo Félix | terça-feira, 19 de Julho de 2016 - 17:14

Tanto Kleber Mendonça Filho quanto Anna Muylaert são críticos abertos do governo Temer, então acho bem improvável que o Ministério da Cultura deste governo indique Aquarius (lembram do rebuliço denunciando o golpe em Cannes?!) ou Mãe Só Há Uma como representantes do país no Oscar ...

Daniel Mendes | quinta-feira, 21 de Julho de 2016 - 11:44

Anna Muylaert e Kléber são cineastas chapa branca do estblishment cultural da humanas.

Polastri | quinta-feira, 21 de Julho de 2016 - 18:12

Isso, na verdade eles são críticos a tudo fora do PT e nada dentro do PT, quase cineastas oficiais.

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/03/1753724-em-premiacao-anna-muylaert-dedica-premio-a-lula-e-dilma.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/07/1793422-anna-muylaert-prepara-documentario-de-dilma-afastada-da-presidencia.shtml

Apesar de o governo ter mudado não acho que o establishment cultural da brodagem tenha mudado tanto assim, aposto que Aquarius vai pro Oscar do mesmo jeito. Se não for, também não acho que seja boicote deliberado. Só lembrar que Tropa de Elite ganhou o Urso de Ouro e não foi, Linha de Passe foi competição em Cannes e também não foi. O prestígio em festival não é garantia.

Alexandre Carlos Aguiar | terça-feira, 26 de Julho de 2016 - 07:50

Então a discussão vai cair na formatação partidária que está aberta no Facebook? Quer dizer que vai ser deixada de lado a qualidade técnica e as relevâncias da arte? Vai ser reeditado o macatarthismo? Já havia lido bobagens nas colunas da mídia por aí sobre as insinuações políticas no A Que Horas Ela Volta, e agora isso. Acho que o Brasil precisa mudar a sua mentalidade, ser mais plural, ser mais maduro, porque esta dicotomia barata relacionada a partidos políticos é mediocrizante.

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