8,5
Suponhamos – porque de fato está em tela, mas, por enquanto, apenas suponhamos, como numa suspensão – que a apreciação, a “fruição”, a experiência de Madame Hyde (idem, 2017) possa ser dividida em duas camadas perpetuamente entrelaçadas, uma de magia e outra de realidade, ou ainda cotidiano, mas que esse matrimônio há de se catapultar por um acontecimento que se prolifera, como acontece com a maior parte do cinema, numa manifestação que rompe a tessitura frágil do mundo para encantá-lo de algum modo que nada, a partir dali, seja o mesmo – e este “seja o mesmo” é mais nevrálgico do que a narrativa que se faz encantar por sua camada de magia, porque, aqui, à senhora Géquil, fisicamente, comprovadamente, as coisas não são as mesmas por natureza: alguns são mais fracos, menos providos de... e a variante ‘x’ é infinitamente elástica às circunstâncias que a fazem cambiar. É um filme de meios e potências, não esqueçamos.
Pois se nada “é o mesmo”, e duplamente, Bozon é talvez mais ardiloso que Stevenson, e o berço do Médico e o Monstro, aqui apenas solicitado como Profa. de Física versus Heroína em brasa, não se decanta até que o sigilo sobre a coexistência de ambas exploda por sobrepujança de um dos lados, e não só porque a grande personagem incarnada por Huppert (a demasiado Humana), perdura; aliás, como o cinema está fatalmente mais condenado à indicialidade que a literatura, a invasão do superpoder na base contextual fica livre ora para gerar cômicos frutos, ora para caminhar até o ponto em que a ajuda “dos céus”, visivelmente interferindo mais pela força do que pelos meios, e como solidez contrária à humana que nunca pôde cessar de insistir, seja mais pesarosa que seus efeitos. Como nos prolongamentos do toque de Madame Hyde “acesa”, semelhantes aos sulcos escarlates que se propagam nos corpos para incendiá-los em seguida, esse cotidiano enfaticamente prosaico e cheio de cor vai se rasgando. Em alternância intervalada com a precisão do roteiro enquanto esmero, compilação microcósmica dúbia, não tão avesso ao lirismo que irrompe da tensão entre os dois mundos co-habitantes, há o diretor excêntrico, o pupilo enervado, os cães fritos no asfalto, quase fósseis da comédia francesa (humana) que hoje murcha tão longo estira a língua para sorver trejeitos americanos.
Mas só que o acontecimento, literalmente o raio que eletriza aquela mulher, o mundo, e o mundo daquela mulher, dota-a de um superpoder com o custo de uma tristeza, ao ponto de que cada vez mais que ele a possui para refletir numa boa ação, numa equalização dos meios, o corpo minúsculo de Huppert, mas não só a carne-presença, também aquilo que os cabelos de fogo não acompanham mais em vida interna, em ânimo incandescente, apaga-se numa carga processual de fraqueza que, diferente do lendário Dr. Jekyll, ela abraça com melancolia e trapaceia, sábia estrategista das impossíveis equações que é, antes de ser possuída por completo – assim como em Elle (idem, 2016), e o que justifica mais uma vez sua monstruosidade enquanto atriz, xamã, está tudo dado ao rosto, e se ela vai de inofensiva à resoluta, num verdadeiro personagem como não vemos em anos, é porque do traço pesado da boca ao soturno batalhado da tez caridosa se delineia um absoluto oposto ao bulbo candente em que vai se iluminando seu corpúsculo, flutuando em elipses que são atestados: aos bons narradores, as obras se curvam como salas de espelho, e o familiar entra num jogo de esconde-esconde.
Não falamos aqui do expressivo logro do tremor, do horror que se implanta apenas numa escrita diabólica no espelho (precisamente por sua naturalidade!) e serve de signo ao monstro, como se a oposição dos meios e a preferência pela economia dos recursos fizesse com a obra multibilionária uma oposição simples de suposta “preferência”, como se a visualidade digital do rosto humano tomado por feições monstruosas ou os críveis grifos sangrentos de um regime estivessem para Madame Hyde apenas estirados numa proporção financeira e também estética. Mas o que é isto que faz a paulatina possessão de Géquil por Hyde ser tão, senão mais assombrosa que a possibilidade de circunvoluções musculares ou timbres alterados, e somente por meio dos movimentos do aparato, sutis variações do corpo e atenciosos jogos entre todos seus blocos e o todo, ou seja, da mise-en-scène?
Como Gilles Deleuze já havia percebido, o cinema é uma grande máquina das partes e do Todo, é este jogo que dita o fervor solitário de cada bloco-cena e o apaziguamento explosivo do fim que encerra só parcialmente. Decerto que o truque está não só na capacidade de fazer uma personagem, como uma variável física, entrar em relação com o todo e fazer tremular o presente ao qual só cabe uma solução. Debaixo desta, ao contrário de que se pensa, centenas de possibilidades de atravessar pela redoma misteriosa da obra e de suas palavras finais, assim como aqueles possíveis outros a que também não temos acesso e que fazem de Madame Hyde um híbrido de encantamento e familiaridade: as lacunas do acesso, os interstícios entre dois ou mais que por um longo tempo ainda chamaremos de ficção.
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