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Críticas

Cineplayers

Bastante fiel ao romance original, Chabrol evita o tédio dos romances de época americanos e ingleses.

8,0

Em 1991, o diretor Claude Chabrol resolveu filmar a história de Emma Bovary, a adúltera mais famosa da literatura mundial. No papel, Isabelle Huppert, atriz fetiche do cineasta, que com ele já fez oito filmes. Com poucos recursos e uma produção assumidamente mais comercial e acessível ao grande público, o grande diretor e a grande atriz fizeram uma controversa adaptação para as telas do romance imortal de Gustave Flaubert, cheia de admiradores e com certeza plena de detratores.

Afora as restrições orçamentárias e a dificuldade de se levar às telas um dos mais conhecidos, lidos e admirados livros franceses, Chabrol botou para funcionar como nunca sua capacidade de síntese, seu formidável senso de narrativa, sua limpidez na direção e sua arguta, por vezes implacável, visão de mundo, bastante crítica da sociedade preconceituosa e conservadora dos tempos atuais. Sua narrativa tem o instinto provocativo de seus filmes de suspense, da qual é considerado um dos mestres. 

Emma já foi considerada de tudo, mas a histriônica heroína das feministas foi a mais predominante nos últimos anos. No entanto, Emma vem ganhando novos contornos, menos idealistas, em revisões que a tornam cada vez mais atual. Foi por esse caminho, sem levantar bandeiras, que diretor e atriz encontraram para dar mais uma contribuição para as intermináveis discussões sobre Bovary. Até chamaram o filme de naturalista, não sem razão, tamanha a objetividade do diretor com seu objeto. Daí começam as críticas.

Quem hoje condenaria Emma Bovary? Leitora assídua de romances sentimentalóides românticos, tornou-se uma sonhadora sem os pés devidamente fincados na realidade, de forma que não vê nada mais do que tédio em seu casamento com um médico medíocre, em especial depois que se mudam para o interior da França. Lá, cai fácil na lábia de um rico proprietário de terras, um conquistador de mulheres que abandona Emma depois que esta lhe propõe fugir juntos.

Cuidar de sua filha lhe entedia, o marido lhe dá nos nervos, a pequena cidade provinciana lhe é mortal, bordar, ler romances, fofocar, nada dá prazer a Emma Bovary, que passa os dias a comprar vestidos cada vez mais caros e bonitos, endividando-se muito além da capacidade de pagamento do esposo, que teve a carreira seriamente prejudicada depois que resolveu operar o manco da cidade, operação desastrosa que acaba custando-lhe a perna até o joelho.

Chabrol narra tudo isso sem excessos, caminhando firme para o fim trágico de Emma, não sem antes passar por seu segundo amante, esse um romance “lúcido”, sem sonhos nem ilusões, que a promoveu a mártir das feministas desde então. Para quem leu o romance, é um delírio ver as roupas, casas e personagens tão exaustivamente descritos desfilar na sua frente (os figurinos de Corrine Jorry foram indicados ao Oscar). Houve algumas adaptações no roteiro, nenhuma grave que se possa reclamar (o primeiro amante manda uma carta para a Emma pedindo que esta o esqueça, enquanto no livro ele simplesmente não aparece na noite da “fuga”).

A Madame Bovary de Claude Chabrol, o mítico diretor da Nouvelle Vague, não está entre seus melhores filmes: não tem a mesma qualidade de As Corças, A Cerimônia, Um Assunto de Mulheres ou Os Primos ou Nas Garras do Vício. Mas há algo de exagerado em transformar o filme no verdadeiro saco de pacada para muitos críticos e espectadores, além dos amantes do livro. Em especial a interpretação de Huppert, considerada muito fria e pragmática para o papel – como eu disse, diretor e atriz não a elevaram aos píncaros feministas e da idolatraria romântica, daí uma certa resistência do público, acostumado a lágrimas furibundas ao final de tragédias romanescas como essa. 

A Bovary de Chabrol não é um desses exagerados e ocos filmes de época americanos, nem tem a pompa dos entediantes filmes ingleses passados na era Vitoriana, é um filme que conta uma história com toda a sinceridade. Na minha opinião, Isabelle Huppert se sai bem, muito bem, aliás, nesse papel difícil, ainda mais que o filme não tem grandes outros atrativos, dados as falta de dinheiro, que não a atuação de sua atriz principal.

Enfim, dá uma boa discussão a adaptação do livro, que ninguém poderá acusar de não ser fiel ao original. O cinema, para muitos, é herdeiro da tradição romanesca que o livro em questão justamente tanto criticava – daí as resistências a essa adaptação tão sem firulas. Chabrol também critica o pieguismo e sentimentalismo na sétima arte. Fez um filme em que um grande diretor (e Chabrol é dos grandes) e uma grande atriz assumem o desafio de enfrentar um personagem muito complexo. Ou seja, Madame Bovary também é ele.

Comentários (1)

Adriano Augusto dos Santos | domingo, 08 de Janeiro de 2012 - 09:46

Falou muito bem Demetrius.
Não entendo o porque desse filme ser tão maltratado pela crítica.
Isabelle Hupert foi um espetaculo.

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