Homenagem de Almodóvar ao cinema noir, com personagens fortes e crítica à Igreja Católica.
Má Educação segue o mesmo estilo dos filmes recentes do diretor espanhol Pedro Almodóvar, como Tudo Sobre Minha Mãe e Fale com Ela, tanto em aspectos técnicos como em artísticos. Isso já seria suficiente para você entender que Má Educação é mais um filme de altíssimo nível, afinal essas duas películas citadas são filmes que poderiam muito bem receberem o rótulo de “obra-prima” sem muita injustiça. Talvez não seja para tanto no caso de Má Educação, mas o filme mais uma vez encanta principalmente pela sua direção e pela paixão com que Almodóvar consegue colocar seus personagens, além de mostrar mais uma vez seu amor com o cinema, dessa vez fazendo isso com o gênero noir.
Todo o filme pode muito bem ser considerado uma grande, lindíssima homenagem ao cinema noir, tanto pelo seu roteiro (que faz referência direta a clássicos absolutos do gênero, como ao maravilhoso Pacto de Sangue) como pela sua trilha sonora. Mais noir impossível. A segunda metade, então, é quase uma transcrição literal do clássico de Billy Wilder. Mas já estou me adiantando (desculpe, acontece muito isso). Má Educação é uma história de idas e vindas no tempo, confunde o espectador e confunde o que é realidade de ficção (há um filme sendo rodado dentro do filme). O roteiro é bastante confuso, os personagens se misturam e mostram-se diferentes do que pareciam. Mesmo assim, Almodóvar faz um belíssimo trabalho de direção e todos esses recortes no roteiro apenas servem para criar um clima maior de suspense – coisa que ao final funciona muito bem.
Almodóvar é um apaixonado por cinema e aqui homenageou grandes filmes (não apenas do gênero noir). Moon River, música-tema do filme Bonequinha de Luxo (com Audrey Hepburn) é cantada esplendidamente por um dos personagens do filme, já que o mesmo filme é citado por lembrar uma fase marcante da infância de um personagem. A paixão do diretor por cinema não restringe-se, porém, apenas em encaixar belíssimas referências de clássicos em seu filme, mas na direção e cuidado com que comanda seus atores, na forte ligação que ele cria entre personagens e espectadores. Geralmente seus personagens são comuns, bastante realistas, e mesmo assim conseguimos imaginar neles algo de espetacular, numa mistura de realidade e ficção que é difícil de encontrarmos em outros diretores.
Muitos irão ver esse filme, obviamente, pelas tórridas cenas de homossexualismo, mas não creio que esse seja um fator muito relevante. Ajuda o ator Gael García Bernal ser um dos novatos mais queridinhos da atualidade, já sendo considerado o novo símbolo sexual do cinema e com uma carreira com enormes possibilidades pela frente, desde que saiba manejá-la bem. Em alguns momentos o diretor parece fazer do homossexualismo um brinquedo do roteiro, forçando closes totalmente hilários (no contexto) de partes íntimas dos atores (a cena do banho de piscina) – algo que à princípio pode parecer desnecessário ou mesmo apelativo, mas encaixa-se muito bem na situação. Enfim, a opção por fazer da maioria dos personagens homossexuais ou transexuais no filme é mais uma característica do próprio diretor do que uma necessidade do roteiro. Creio que o filme seja antes de ser sobre homossexualismo uma homenagem ao cinema noir, como já expliquei no início dessa matéria. A prova disso é que o filme funcionaria perfeitamente do mesmo jeito com todos os personagens sendo heterossexuais.
Há também uma importante crítica à Igreja com padres abusando de crianças, embora atualmente isso seja algo comum e quase esperado – não há mais espanto com notícias desse tipo. Esse tema é mais relevante do que o homossexualismo e muito bem interpretado, principalmente nas partes em que o filme volta no tempo para exibir a infância do protagonista Inácio. Mas ainda assim é apenas mais um dentre os vários temas tratados pelo filme. É difícil definir Má Educação como sendo sobre alguma coisa apenas, é um trabalho completíssimo, e por isso pode confundir alguns espectadores, principalmente por causa da característica já comentada: a sua montagem não-linear e a dificuldade, em certos momentos, de entender o que é realidade e ficção dentro do mundo do filme. Mais uma vez, esse é o comportamento exato dos filmes noir: a mocinha pode se transformar na bandida de uma hora para outra, e tudo que você viu até certo momento pode ter sido apenas uma grande farsa.
Má Educação é mais uma aula de cinema do vencedor do Oscar (por melhor roteiro em Fale com Ela) Pedro Almodóvar. É um dos diretores que conseguem marcar suas características na tela (cores fortes, vivas – talvez um pouco enjoativas – enchem os planos de seu filme) mais até do que seus personagens, por melhores e mais bem tratados que estes sejam. Novamente, não é um daqueles filmes revolucionários ou nem mesmo inovadores, mas é levado com tanta perícia pelo diretor (e pelo roteiro) que é difícil achar falhas. Desde a trilha sonora (embora não seja superior à de Fale com Ela) até as interpretações, tudo é sólido e bem estruturado. Um filmão tanto para os adoradores do diretor quanto para os bons cinéfilos.
Rasgou seda, hein? Gosto do Almodóvar, mas esse é um dos mais fraquinhos dele.