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Críticas

Cineplayers

“O que se leva dessa vida, é a vida que se leva.”

8,0

Dentre todos os cineastas que fizeram história no Cinema Marginal, Rogério Sganzerla foi aquele que mais se fez notar, em especial depois de lançar O Bandido da Luz Vermelha (idem, 1968), filme que praticamente inaugurou o famoso movimento. Diferente de tudo visto até então no cinema nacional, este trabalho apresentou uma linguagem cinematográfica própria e foi usado como forma de protesto, sátira e quebra de alguns convencionalismos narrativos e estéticos – algo parecido com o que Godard e Truffaut promoveram através da nouvelle vague francesa. O personagem-título, vivido por Paulo Villaça, foi uma espécie de anti-herói nacional, espalhando terror pela sociedade burguesa e ao mesmo tempo personificando aquele tipo de personagem que viria a ser onipresente em todas as produções de Sganzerla – perigoso para muitos, mas inevitavelmente tão vítima quanto qualquer um.

Se em 1968 esse trabalho serviu como uma forma de revolução artística e até mesmo social, sua continuação lançada este ano pode ser vista de maneira um tanto mais particular. Luz nas Trevas – A Voltado do Bandido da Luz Vermelha (idem, 2010) é um projeto idealizado pelo próprio Rogério Sganzerla, mas que nunca pode ser concluído por ele, que veio a falecer em 2004. Ficou entãoa cargo de sua família dar continuidade a essa ideia difícil, que nada mais é do que transpor para os dias atuais toda a bagunça, sujeira, irreverência e subversão promovida pelo cinema marginal de décadas atrás. Portanto, antes de mais nada, é necessário entender que se trata de um trabalho concebido inteiramente em um âmbito familiar, e de certo tom de homenagem; uma promoção do legado deixado por Sganzerla ao cinema nacional — e o primeiro indício de que é este seu objetivo pode ser encontrado logo na sinopse.

Ao contrário do que foi passado no filme de 1968, o Bandido da Luz Vermelha (agora vivido pelo canto Ney Matogrosso) não está morto, mas sim preso. Seu filho, conhecido como Tudo ou Nada (André Guerreiro Lopes) deu continuidade ao seu trabalho e vem promovendo uma onda de terror na sociedade, ao lado de sua namorada Jane (Djin Sganzerla). Personagens marginalizados, excluídos da sociedade, que representam toda uma classe pouco retratada nas ficções, voltam a ganhar por conta disso uma atenção, que não lhes era dada com tanto carinho desde a época em que o cinema marginal vigorava no Brasil. Ou seja, o temido anti-herói do primeiro filme deixou seu legado, assim como Sganzerla deixou o seu.

Então, mais do que uma continuação, Luz nas Trevas é um tipo de diálogo cheio de signos visuais com o filme de 1968. Os dois trabalhos se mesclam aqui através de toda a curiosa técnica narrativa e estética do cinema marginal e formam juntas uma espécie de mosaico de personagens, situações, críticas, sátiras, interlocuções e metalinguagem. Considerando que o politicamente correto foi ganhando um espaço maior com o decorrer dos anos, é interessantíssimo ver em um trabalho moderno o mesmo vigor e transgressão daquele tipo de cinema vanguardista e feroz de outras épocas. E quem ganha créditos por isso é o elo entre essas duas produções: Helena Ignez.

Se na obra original, Helena interpretava Jane (mas não a mesma Jane do filme atual, embora haja uma óbvia ligação entre as duas), em Luz das Trevas ela se divide em dirigir a produção ao lado de Ícaro Martins e atuar na pele de Madame Zero. Sua presença na frente e atrás das câmeras confere ao filme um ar de segurança, transmitindo aos fãs a certeza de que se trata de um filme que não poderia ser mais fiel aos propósitos de Sganzerla quando o idealizou. E é também essa mesma presença que garante no filme uma retratação da força da mulher brasileira moderna (algo que sempre esteve presente nos trabalhos de Sganzerla), com o auxílio da igualmente talentosa Djin, filha do casal. As semelhanças e diferenças entre as duas “Janes” são bastante curiosas de se analisar. Ambas são igualmente fortes, espirituosas, intensas, totalmente autossuficientes, e não precisam de homens para nada além da satisfação de seus desejos do momento. Por outro lado, a Jane de Djin se mostra verdadeiramente apaixonada por Tudo ou Nada e no fundo anseia mudar de vida. Chega um ponto em que a figura das duas praticamente se funde em uma só, enquanto há momentos em que se pode notar a individualidade composta pelo trabalho de Djin – em um paralelo bem interessante entre os trabalhos das próprias Helena Ignez e Djin Sganzerla.

Ney Matogrosso, um dos mais performáticos intérpretes da música brasileira, foi uma escolha arriscada, mas não menos ideal. Sua composição como Bandido da Luz Vermelha, bastante particular e diferenciada daquela que conhecemos na figura de Paulo Villaça, não deixou dúvidas de que este filme pode soar hoje tão chocante e irreverente quanto o original de 1968. E esse era um dos maiores desafios de toda a produção. Afinal, chocar o espectador hoje, em uma época em que quase nada mais se mostra capaz de chocar, é muito mais difícil do que impactar a plateia dos anos 1960/1970. Se os elementos de caos que fizeram do cinema marginal algo tão confuso e desconfortante parecem no cinema atual algo pouco digestivo (afinal, o grande público de hoje, em geral, não se mostra capaz de entender essas referências), o verdadeiro impacto de Luz nas Trevas está na forma como ele soa deslocado e incômodo.

No fim das contas, este trabalho de Helena Ignez e Ícaro Martins não se resume a uma simples homenagem, mas estabelece um paralelo entre as duas histórias, as duas sociedades, os dois personagens e as muitas gerações que separam um filme do outro. Na hora de comparar um com o outro, é impossível não traçar esses paralelos e notar como o Brasil mudou de lá para cá em diversos aspectos (social, econômico, político etc.), mas em especial no seu cinema. A comunicação entre os dois estabelece uma espécie de simbiose que enriquece tanto um quanto o outro. Esse conjunto em família (que ainda inclui Sinai Sganzerla, também filha de Rogério e Helena, na produção) resulta em um trabalho que faz jus aos ideais libertários que tanto marcaram presença na filmografia de Sganzerla (com direito a ecos de O Demônio das Onze Horas [Pierrot le fou, 1965], de Godard), celebrando sempre o cinema como uma forma de se expressar e ousar ser aquilo que se é.

Comentários (11)

Reno Beserra | terça-feira, 15 de Maio de 2012 - 20:50

Vi o trailer e parece ser loucão. E a Djin Sganzerla é linda demais, putaquepariu.

Luiz Fernando Coutinho | terça-feira, 15 de Maio de 2012 - 21:41

é meio decepcionante, mas vejam todos mesmo assim, a ignez merece nosso eterno amor

Marcos andré Pereira | quarta-feira, 16 de Maio de 2012 - 14:15

se não vai passar em bh imagina aqui em taiobeiras kkkk

Adriano Augusto dos Santos | quarta-feira, 31 de Outubro de 2012 - 09:58

Que texto fantástico do Heitor. Tanscrição em letras do que é essa maravilha.
Um dos mais interessantes que vi nessas épocas.

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