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Críticas

Cineplayers

Quando o ápice é o olhar.

8,5
Há algum tempo um amigo me disse que via o jovem Steven Spielberg em Jeff Nichols; nunca debochei. Justamente me peguei analisando essa afirmação, e talvez esse novo Loving a um só tempo afaste completamente essa afirmação da vista e também coloque em perspectiva para nós que Spielberg tem Munique no currículo e isso faz só 10 anos. Essa afirmação fica forte ao olhar o currículo de Nichols, com pequenas ficções-científicas intercaladas com filmes de grande teor de humanidade. Esse novo parece um híbrido entre a matéria-prima de uma categoria com o absurdo narrativo da outra. Mas a verdade é que Nichols está fazendo aqui o filme que todos não param de fazer, sob um ponto de vista que só ele poderia dar.

Imagino que deva ser muito complexo aceitar um projeto de raio X biográfico na América e conseguir colocar na lata uma produção que vá no lado oposto do que a linha de produção fabrica no gênero desde sempre. Mas Nichols faz. Tendo em mãos uma história real que simplesmente mudou uma questão da constituição americana por conta de um casamento inter-racial, Nichols seca sua narrativa até o limite, trabalhando quase que exclusivamente com o olhar. Consigo ver 'Loving' sendo dirigido por qualquer outro e sermos obrigados a ver os personagens fascinantes retratados aqui virarem máquinas de melodrama. As opções dele em suprimir a emoção (e, vejam a piada, assim conseguindo com uma história tipicamente americana) nada mais fazem do que nos tocar ainda mais fortemente do que a versão 'rio de lágrimas pobre e cliché' que podia ter ganhado vida. Um grande momento de decisão narrativa que já fascina, quando sabemos que eles poderiam simplesmente até mudar características da história original para tornar os protagonistas duas tagarelas.

O projeto que chega às telas do mundo todo a partir de novembro é o oposto da convenção, o que deve atrair muitos admiradores mas também muitos defensores da cartilha usual. E o interesse de Nichols é justamente ser fiel, a si mesmo e à qualidade da história que pretendia desenvolver. Cada projeto tem uma dinâmica própria e talvez hoje ele seja dos mais criteriosos cineastas jovens americanos, em linguagem cinematográfica e estofo textual, justamente por entender a demanda de cada roteiro que leva adiante. E aqui o silêncio é a tônica dominante, em todos os sentidos. Inclusive a extraordinária trilha sonora é sutil, nada intrusiva, aparecendo sempre como complemento ou pano de fundo a cena, e não poluindo-a como de hábito. Isso tudo porque talvez a vida de Jeff e Mildred Loving fosse silenciosa mesmo, e atribuir ao projeto características de seus protagonistas nada mais é do que um acerto completo.

Com uma comunicação que usa o silêncio como forma de criar atmosfera de delicadeza, o trabalho de Nichols deve ser também muito agradecido pela presença da dupla Joel Edgerton e Ruth Negga. Num ato de bravura, essas três pessoas compraram a briga de que um amor tão desbravador poderia sim ser introspectivo e ainda assim lotado de sentimentos. Acompanhamos então o jogo de absurdos no qual são arremessados Mildred e Jeff, que continuamente passam a ser presos, perseguidos e ameaçados pelas autoridades por não serem da mesma raça. Toda a revolta, o amor de um pelo outro, a esperança, são vendidos pelo mais que expressivo olhar de ambos os atores. Repletos de coadjuvantes ao seu redor, Edgerton e Negga compuseram uma sinfonia mais que delicada com todos eles, contribuindo todos para o espetacular emocional demonstrado entre esse casal que se comunica bem pouco através de verbalização mas que conseguem compartilhar seu imenso talento e sua química.

Um produto assim, tão delicado e sutil, só poderia ter um destemor muito grande por contar sua história da maneira mais próxima do real possível, e Nichols se anula e a outros setores da parte técnica para focar no que deveria ser primordial a qualquer história: sua integridade fílmica. Já consigo ver claramente as pessoas reclamando sobre o filme ser quadrado, convencional, frio, distante, o que é o oposto de absolutamente tudo e de todas as decisões tomadas por Nichols, quando não havia mais nada a ser decidido ali que não seja para o bem do filme, que atinge pontos de excelência exatamente por ser tão limpo e conciso, cuja maior vaidade foi não brilhar. E assim, brilhar mais ainda.

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