A obra-prima dos filmes sobre aventuras adolescentes.
Mencionar o nome de George Lucas é inevitavelmente remeter a saga de Star Wars e sua obstinação por efeitos especiais, tecnologia, ficção científica e tudo o mais que permeia a aura espacial que compõe a sua grande obra como roteirista, produtor e diretor. As razões pela qual a franquia se tornou um sucesso tão devastador quanto revolucionário, sobretudo um novo modelo de produção cujo impacto e influência ainda é sentido nos dias de hoje (aliás, principalmente nos dias de hoje) são tantas que mal caberiam serem mencionadas aqui. Até mesmo porque a intenção desta introdução não é esta – e o filme a que esta resenha debruça-se não é este.
Mas por que então falar em Star Wars? O fato é que, embora a vocação de George Lucas sempre tenha sido voltada à produção de obras de um acentuado tom ficcional desde suas primeiras incursões no cinema (o embrião da série é seu filme sci-fi THX 1138, de 1971) é notório que jamais um grande estúdio de Hollywood teria tido ousadia de correr o risco de bancar as idéias pouco ortodoxas e um tanto inéditas contidas na saga – ainda mais vindas de um novato e desconhecido roteirista/diretor. O que seria contornável diante de um aval, uma prova de que Lucas era um cineasta capaz de mobilizar um grande público por meio de um filme que conciliasse apelo popular, qualidade e, é claro, rentabilidade. Neste contexto surgiu o segundo longa da carreira de Lucas, finalista de melhor filme no Oscar de 1974, e que é para o American Film Institue uma das 100 melhores fitas de toda a história do cinema: American Graffiti - Loucuras de Verão. E que, diga se de passagem, nada tem a ver com espaço interplanetário, ficção científica – aliás, o universo aqui é surpreendentemente oposto ao comumente associado a Lucas.
A idéia partiu de seu amigo Francis Ford Coppola, que recentemente havia concluído as filmagens de O Poderoso Chefão, aconselhando-o a elaborar uma comédia adolescente ambientada nos anos ‘50 (entenda-se: carros hot rod, rock’n roll, lanchonetes, delinqüência juvenil, etc.) justamente para permitir o ingresso de Lucas no mundo das grandes produções – no final das contas, o filme só veio ao mundo graças ao nome de Coppola nos créditos como produtor. O curioso é pensar que, partindo de uma premissa tão ilegítima, abordando uma temática tão distante do que se convencionou ser a verve de George Lucas, tenha nascido um filme tão inspirador, autobiográfico, ousado e com uma linguagem tão original. Apesar de tratar-se de uma boa comédia, o enredo é apresentado modo absolutamente tocante, abordando a juventude de forma sensível e em um tom crepuscular que o faz lembrar outros clássicos como A Última Sessão de Cinema, Adeus à Inocência e A Primeira Noite de um Homem.
O filme se passa precisamente no ano de 1962 (aliás, o slogan promocional do filme é “Where were you in ‘62?”), e concentra-se todo, de modo bastante peculiar, somente nos acontecimentos da última noite de quatro jovens em sua festa de despedida do High School em sua provinciana cidade de interior, Modesto, CA – não por acaso a cidade natal de George Lucas. A ida para a universidade representa o escape de um território assolado pela falta de perspectiva de vida, sendo que o filme despretensiosamente cristaliza o momento de transição onde acredita-se deixar para trás a adolescência em busca da sonhada vida adulta. Os personagens são Curt (Richard Dreyfuss), Steve (Ron “Ronny” Howard), John Milner (Paul Le Matt) e Terry (Charlie Martin Smith). Cada personagem conta com sua personalidade característica (o introspectivo, o popular, o rebelde hot-rodder, o “nerd”), um tanto caricata em certos momentos, mas não sem profundidade ou veracidade, uma vez que Lucas disse que, ao conceber o roteiro, extraia de si elementos para elaborar cada papel, identificando cada personagem de acordo com um momento de sua juventude.
O filme teve de ter o roteiro reescrito diversas vezes, devido a impasses oriundos do estúdio, gerados em parte pelo fato de o filme não concentrar a narrativa em um protagonista, mas em quatro simultaneamente, ou seja, acompanha-se cada personagem em seu núcleo e dramatização separadamente, embora as histórias estejam relacionadas. Hoje é possível encontrar uma infinidade de títulos díspares com essa estrutura, de Magnólia a American Pie, ou de Simplesmente Amor a 21 Gramas, mas em 1973 isto não era usual, e pouco imaginável para um filme com essa temática.
Outra preocupação dos produtores era em relação à música do filme – por diversas razões. Ultrajando a tradição cinematográfica americana, não há música incidental composta especialmente para o filme (tampouco por um John Barry, Henry Mancini ou Leonard Bernstein). O estúdio via-se diante de uma bomba: um filme sem protagonista, um musical onde ninguém canta, um elenco sem nenhuma estrela de peso. Todas as canções presentes na película (sejam diegéticas ou extra-diegéticas) são sucessos das rádios jovens do fim dos anos ‘50/início dos ‘60. Só por ser um filme todo baseado em canções de rock ‘n’roll clássico e doo wop já era o suficiente para causar polêmica, mas a proposta era (e felizmente assim permaneceu) tornar o filme uma verdadeira jukebox, onde todas as cenas são acompanhadas pela única diversão que os personagens podiam ter: o rádio. Portanto, quase que ininterruptamente, são executadas em ritmo frenético as músicas que compõem a trilha, assim como o que hoje conhecemos como vídeo-clipe. Felizmente, o resultado foi esplendoroso, que resultou em um álbum duplo e uma das melhores trilhas da história do cinema, sendo, segundo a publicação musical inglesa Mojo, a mais completa coletânea da era pré-Beatles.
Assim como outros grandes filmes, o elenco afiado de American Graffiti não continha grandes estrelas, pelo menos até aquele momento, mas o filme projetou suas carreiras e a história encarregou-se de tornar o elenco de American Graffiti - Loucuras de Verão um elenco estelar. Richard Dreyfuss anos mais tarde ganharia o Oscar por A Garota do Adeus e seria a figura inesquecível em diversos blockbusters seguintes como Tubarão, Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Ronny Howard, um ator mirim tarimbado da TV americana mais tarde participou da famosa série de sucesso de “Happy Days” (parodiada por Spike Jonze no vídeo-clipe de “Buddy Holly”, da banda Weezer), ficou velho, careca, deixou de ser “Ronny” para virar “Ron Howard” e, assim como Dreyfuss, foi oscarizado – mas como o diretor em que se tornou. É sua a direção, dentro outros filmes, de Uma Mente Brilhante, Apollo 13 e O Código Da Vinci. E Charlie Martin Smith teve o momento alto de sua carreira sendo o memorável agente Oscar Wallace de Os Intocáveis, de Brian de Palma.
Porém a maior estrela a ser revelada pelo filme, não é nenhum dos protagonistas, e sim um antagonista que faz uma pequena e marcante participação no filme: um bronco caipira chamado Bob Falfa interpretado por um total anônimo ator – de acordo com o próprio até então um promissor carpinteiro - de 31 anos chamado Harrison Ford! Juntando os pauzinhos, não é difícil entender porque justamente Ford incorporaria diversos personagens em alguns dos trabalhos subseqüentes de Lucas e Coppola: Guerra nas Estrelas, Indiana Jones e Apocalipse Now. Outra atração curiosa do filme é a do disc-jokey Wolfman Jack, um personagem real. Wolfman é o radialista que Lucas ouvia enquanto vivia em Modesto, e no filme sua participação é muito mais sonora do que física – trotes e conversas em ligações com ouvintes são intercaladas habilmente ao longo do filme. Próximo do fim, sua aparição tem função fundamental para simbolizar sobre do que realmente se trata o filme (“what is all about!”, como dizem em inglês).
À parte do elenco, é a plasticidade do filme que assegura grande parte da magia que filme sustenta. O diretor de fotografia Haskell Wexler, proporcionou à película, fazendo uso de uma ampla gama de matizes, a coloração vivida de uma jukebox. O filme foi filmado no formato Techniscope (pouco acima do tamanho do negativo de 16 mm), o que faz com que a imagem, simultaneamente tenha um aspecto granulado e documental assim como um 16 mm, mas esteja em formato “cinemão” wide-screen.
Ao mesmo tempo em que há um tom de despedida da adolescência, Lucas sabiamente estabeleceu um paralelo entre esse adeus à juventude com uma ruptura que os EUA viviam neste ano como nação. Desse modo o filme representa o fim de um período na América, de um cenário colorido, ainda de certa inocência, que dava lugar há uma nova era de transformações e incertezas, um tempo diante do assassinato do presidente Kennedy, a guerra do Vietnam, a invasão do rock britânico, o uso de drogas sintéticas, a luta pelos direitos civis, os hippies e muitas outras agitações culturais que tomariam conta dos anos ‘60. E é a partir deste canto do cisne da década de ‘50 e prenúncio de uma nova geração é que Lucas consegue formar um retrato americano que dá título ao filme - sobretudo no personagem de Curt, como no momento em que expõem sua incerteza quanto partir ou não para a universidade, receoso de não ser “o tipo competitivo”. Richard Dreyfuss, em entrevista a James Lipton no programa “Inside the Actor’s Studio”, disse ter escolhido o personagem de Curt pois este era o único que realmente sentia que aquela noite em que se passa a trama tinha uma conotação muito especial. Era a partir dali que cada um teria o seu rumo traçado, entrando na real queda-de-braço entre o que se almeja para o futuro e o peso do que a vida pode nos oferecer, em parte como o que enfrenta o personagem de James Stewart em A Felicidade não se Compra. Contar o que irá acontecer com cada um seria estragar todo o significado do filme.
Por fim, um bela, feliz porém melancólica (bittersweet, como dizem em inglês) música dos Beach Boys, sempre com suas fascinantes harmonias de contraponto vocal e progressões de acordes desconcertantes encerra o filme magistralmente. Nada mal para um filme de orçamento de 750 mil dólares e que na época faturou mais de 100 milhões de dólares em bilheteria somente nos EUA e cinco indicações ao Oscar. E o principal: o caminho estava aberto para Star Wars. O resto é história.
Obra brilhante!