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Louca Paixão

(Turks fruit, 1973)
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Críticas

Cineplayers

A dor e a delícia de ser o que é

9,0

O filme de maior sucesso na história do cinema holandês, Louca Paixão (Turks Fruit, 1973), é baseado no livro Delícias Turcas (Jan Wolkers de 1969) que, pasmem, faz parte do currículo escolar holandês até os dias de hoje. Inserida historicamente dentro de um contexto de mudanças e novas possibilidades na Europa, a narrativa está imersa no senso da geração que nasceu nos pós baby boom europeu, período que os jovens que viveram a guerra almejavam construir uma família modelo tendo em conta a doçura da normalidade, a certeza de um país seguro e a estabilidade de um novo governo, claro, ao lado dos filhos que teriam um futuro tranquilo e promissor pela frente.

Por sorte nossa, Paul Verhoeven está cinematograficamente integrado a uma galera que crescia nos canais de Amsterdam que não estava muito afim de seguir a caretice do estilo de vida dos pais. Os anos 60 e 70 trouxeram à tona diversos movimentos de contracultura no continente europeu - tendo possivelmente como principal expoente holandês o “Provo” - que juntos simbolizaram um grande rompimento na estrutura social, política e cultural local.

Portanto, ao invés de ocupar as poltronas do romance ideal adornado com belas joias de Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany's, 1961), Verhoeven e companhia limitada estava mais interessado nas batatas apodrecidas de Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965). O diretor, que anos depois filmaria blockbusters como RoboCop (1987) e Instinto Selvagem (Basic Instinct, 1992), entra com o pé na porta na década de 70, derruba toda e qualquer convenção comportamental e especialmente amorosa que estivesse instaurada na classe média supostamente moderninha e antieclesiástica holandesa.

O filme começa com um flash forward de um duplo homicídio cometido pelo protagonista. A sequência posterior ao assassinato revela o mesmo masturbando-se para a foto da vítima fatal. Depois de construir o fracasso humano e artístico do escultor, a narrativa retorna ao tempo para mostrar num ritmo aloprado de putaria, drogas e criatividade, a vida errante de Eric (Rutger Hauer), o exemplo do que seria hoje um “esquerdomacho”, até o encontro de seu grande amor, a jovem e também impulsiva Olga (Monique Van de Ven).

A linda insanidade do casal, repleta de sensualidade e bom humor, conquista até os narizes torcidos pela atitude intempestiva e machista do personagem principal. Verhoeven constrói propositadamente uma relação de proximidade entre público e misé-en-scene, conectando-os especialmente por uma câmera incessante que registra diversos primeiros planos, os sorrisos e as borbulhas dos corpos da aparente interminável lua de mel dos protagonistas.

Entretanto, o óleo da correia da bicicleta do recente matrimônio começa a secar quando o relacionamento que iniciava, aparentemente blindado de qualquer obrigação social, encontra a família de Olga e as demandas “naturais” que este contato exige. Eric não faz qualquer questão de jogar as cartas convencionais, vive como um outsider, não segue os padrões morais esperados para um homem casado. Ao contrário, despreza-os veementemente, os seus únicos interesses são a escultura e viver a vida intensamente ao lado de sua mulher. Olga também é intensa e apaixonada, mas isso não a impede de nutrir carinho pela família, além disto, sabe que com o ajuda dos pais pode viver uma vida mais cômoda.

O conflito dos protagonistas potencializa-se quando Olga é obrigada a trabalhar em um fábrica de leite, colapsa de nervoso enquanto observa a teimosia artística de seu marido em insistir cegamente na banalização das normas sociais e artísticas vigentes do tradicionalismo característico holandês.

A obra, que começa com um tom irreverente, dominada pelas vibrantes cores características da pegada hippie do cinema americano setentista e uma contagiante trilha sonora, transforma-se num escuro, angustiante e denso drama dialético para o casal. A desconstrução narrativa e estética proposta pela direção aterroriza o espectador, que deixa de suspirar com a leveza da paleta expressionista de Van Gogh e passa a ter de lidar com o denso barroco de Rembrandt.

A cena do jantar familiar num restaurante chinês, toda montada num filtro vermelho, onde todos os membros da mesa parecem já ter ciência da queda de Eric, é um convite angustiante à destruição do próprio romantismo. Não existe louca paixão sem um fim; toda paixão tem uma história e, neste caso, o pincel a pintar o quadro é “rood”. A pira, ciúme ou a própria visão da sua amada sendo cortejada por outro homem em frente a toda família desmonta em vômitos a armadura machista e a autoestima de um “holandesão” de quase dois metros, imagina a do pobre espectador desavisado que via ali a hipótese de um romance hippie estilo Love Story: Uma História de Amor (Love Story, 1970).

Verhoeven desenha, em seu primeiro grande filme, a gênese romântica de um amor característico da impulsividade da primeira juventude, das diversas possibilidades que o amor e o próprio país apresentavam. Louca Paixão é um filme sobre a dificuldade e opressão da realidade na mente livre de qualquer jovem que chega aos 30 anos e precisa pagar as contas, vender a bicicleta, beijar a sogra, fechar tampas de leite e lidar com as consequências máximas de dizer sim ou não para as próprias escolhas.

Comentários (1)

Josiel Oliveira | quarta-feira, 14 de Outubro de 2020 - 09:50

Crítica foda!
"Esquerdomacho" foi exatamente a comparação que fiz um outro dia kkkk.
Contexto, referências, comparações, visão crítica e pessoal.
Parabéns, Igor!
Já tinha gostado demais dos seus 7+ e ficado super curioso com a sua crítica de Sambizanga (que eu ainda não consegui encontrar).
Chegou agregando forte no Cineplayers, vou ficar de olho no seu conteúdo por aqui.
Valeu, abs!

(Aliás, preciso muito rever esse filme! Foda demais)

Igor Guimarães Vasconcellos | quarta-feira, 14 de Outubro de 2020 - 17:04

Brigadaço Josiel!
Valeu demais! Também já andei olhando as tuas lupinhas antes de ver alguns filmes.
Um grande abraço! Seguimos na cinefilia!

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