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A imortalidade do personagem e a crueldade do artista.

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Quando Cleópatra deitou sobre a pele de seu seio uma venenosa serpente africana, seu amado, o general Marco Antônio, já havia morrido. Mais que desespero, o ato da grande rainha egípcia representa amor e fé: amor entre homem e mulher; fé na coexistência espiritual de seres que já cumpriram sua missão no mundo físico. A tragédia Antônio e Cleópatra, de William Shakespeare, inscreve esses dois nomes, que também pertencem à História, nas placas indestrutíveis da eternidade. É sabido que, assim como o brioso triúnviro romano, a Cleópatra real só morreu uma vez; contudo, o Antônio e a Cleópatra do “Bardo Inglês”, assim como Romeu, Julieta, Laio, Jesse James, Marion Crane, a secular família Buendía e muitos outros personagens da literatura e do cinema, baseados em pessoas reais ou não, estão condenados ao eterno retorno à vida, pois são prisioneiros de uma realidade à qual nenhum de nós jamais terá acesso pleno. Sempre que se abre um livro, a vida é “miraculosamente” restabelecida. Aceitar a ficção como realidade provisória é firmar compromisso com a fantasia, que é a suspensão da lógica que rege este mundo de coisas perecíveis.

Em se tratando de um artista como Mario Bava, cuja obra é objeto deste texto, nada é mais justo que falar de corpos humanos, isto é, de massas vivas e perecíveis. Mas é preciso falar desses corpos sem deixar de frisar a tão famosa habilidade de artesão do diretor, herança de seu pai, um escultor cuja influência pode ser facilmente percebida em Lisa e o Diabo (Lisa e il diavolo, 1973), filme no qual realidade e fantasia se misturam. Aqui, personagens decadentes e manequins são controlados por um ventríloquo que brinca com linhas invisíveis e esconde sob aparência humana sua verdadeira e diabólica natureza.

No início do filme, Lisa (a bela Elke Sommer) chega à praça principal de uma cidade espanhola onde há um afresco que, segundo o guia turístico do local, teria permanecido intacto desde a Idade Média graças ao poder do Diabo, o qual no quadro é visto carregando um homem morto. Ao afastar-se do grupo, a protagonista ouve o doce som de uma caixa de música, que a conduz à loja de antiguidades onde está Leandro (Telly Savalas), um homem muito parecido com o Diabo da pintura. Depois do choque, ela percorre os labirintos da velha cidade e, acompanhada de um casal e um chofer, acaba por chegar à mansão onde Leandro trabalha como mordomo. Ali nós conhecemos uma misteriosa condessa (Alida Valli) e seu filho, o perturbado e passional Maximillian (Alessio Orano).

Logo descobrimos que há uma ligação entre os patrões de Leandro e a protagonista: Lisa pode ser a reencarnação de Elena, a amada de Maximillian que manteve uma relação extraconjugal com Carlos (Espartaco Santoni), o falecido esposo da condessa. Contudo, o diretor nada elucida, apenas empurra seus personagens para dentro de um universo oblíquo e interminável. No mundo habitado por esses seres, o tempo sempre se submete ao conteúdo onírico. Por isso, quebram-se os relógios, que não passam de instrumentos vis e corrompidos por uma lógica que em Lisa e o Diabo não tem valor algum.  No entanto, o fulcro do filme é a relação da arte (que simula vidas e delineia sonhos) com a morte, que só pode existir em um mundo que se submete às condições naturais de tempo e espaço. Ou seja: aquilo que trafega livremente entre realidades e não pode ser percebido cronologicamente é imortal. Tão imortal quanto a Cleópatra de Shakespeare, que, pelo menos enquanto existirem leitores, irá repetir infinitamente o gesto que a matou.

Lisa/Elena é a prisioneira que tenta escapar ao infortúnio dos movimentos circulares eternos, como os da caixinha de música sobre a qual giram pequenas imagens. Todavia, a personagem de Sommer é apenas uma marionete e jamais toma consciência de sua condição. O único que tudo compreende é Leandro, que carrega consigo bonecos que representam os mortos que são conduzidos pelo diabo do afresco. Logo, se o artesão, aquele que cria, é um deus, assim como o romancista e o cineasta, Leandro, o grande manipulador da história, o mestre dos fantoches, só pode ser o próprio demônio. Por conseguinte, não haveria serviço mais apropriado para o personagem de Savalas que o de serviçal, pois é do que vem de são suas mãos aparentemente subservientes que todos se alimentam à mesa. Afinal, o “grande inimigo” sempre tenta manipular nossas vidas por meio de nossos desejos e necessidades.

Lisa e o Diabo é um filme sobre uma trajetória contínua, repleta de saliências e reentrâncias. Por isso, a própria Elke Sommer preferiu interpretá-lo como um sonho: “I don’t think she [Lisa] is reviewing her previous life”, “To me, [the film] is dream...”*, disse a atriz. De fato, há aqui muitas possibilidades, mas as reflexões de Bava, obviamente, são mais ricas do que qualquer comentário ou interpretação. Indispensável não é saber se a protagonista sonha ou vive, mas ter consciência de que ela faz parte de uma trama elaborada por um ser muito poderoso: o artista-demônio. O que Lisa vive (ou imagina) é o resultado do blefe do jogador-artista-demônio, uma entidade que trabalha com a ilusão.

Portanto, em Lisa e o Diabo, a história serve de pretexto para Bava manipular os dispositivos da arte a seu bel-prazer. Assim, o que importa não é o destino, mas somente o próprio ato de viajar, mesmo que cada deslocamento não passe de uma cruel ilusão. Lisa... é a obra das impressões criadas pelas imagens que surgem em uma casa de espelhos na qual um indivíduo se perde e jamais volta a se encontrar. Enquanto esse indivíduo cumpre seu destino, nós sentimos prazer. E a culpa é toda de gente como Mario Bava, que, especializada em criar seres imortais, é cruel por natureza.

* Trechos extraídos do livro Mario Bava: All the colors of the dark, de Tim Lucas.

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Comentários (5)

Gian Couto | sábado, 13 de Junho de 2015 - 11:13

Outra grande obra do Bava. Parabéns pelo texto.

Guilherme Bakunin | sábado, 13 de Junho de 2015 - 11:24

basicamente o maior filme de tds os tempos

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 13 de Junho de 2015 - 18:30

Foi a partir desta obra-prima que conheci o trabalho de Bava. Bela Crítica.

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