8,5
Depois de ser abandonada por seu amante Bastide, a perversa Marquesa de Merteuil (Glenn Close) só quer saber de vingança. Como a própria diz em determinado momento de Ligações Perigosas (Dangerous Liaisons, 1988), seu propósito no mundo é dominar o sexo masculino e vingar o feminino. Depois de muito manipular e brincar com seus amantes, ela planeja algo mais sofisticado agora que está com o ego ferido e, para isso, precisa da ajuda de seu amigo e ex-affair, o Visconde de Valmont (John Malckovich), conhecido pela libertinagem e falta de caráter. Sabendo que a pretendente do amante fujão é a jovem e inocente Cécile de Volanges (Uma Thurman), escolhida por ser o modelo ideal de esposa virtuosa, criada em convento e virgem, a Marquesa pede para que o Visconde seduza a jovem e a corrompa, para humilhar e surpreender Bastide na lua de mel. Ultrajado com a facilidade do “serviço”, Valmont recusa a proposta e se diz mais interessado em corromper a Madame de Tourvel (Michelle Pfeiffer), mulher casada e conhecida pelo rígido código de conduta moral, que está passando uma temporada na casa da tia do Visconde. No fim, os dois entram num cruel acordo de troca de informações – basta Valmond provar, através de cartas, o sucesso no jogo de conquista com Tourvel para que receba em troca uma noite com a Marquesa de Merteiul, que por sua vez tentará corromper Cécile através de Raphael Danceny (Keanu Reeves), um jovem professor de música.
A partir desse plot, desenrola-se a teia de intrigas e traições que forma o todo de Ligações Perigosas, a melhor adaptação cinematográfica para o polêmico livro de Choderlos de Laclos, que escandalizou a elite francesa na época de seu lançamento, no século XVIII, retratando os nobres como pessoas mesquinhas e manipuladoras. Grande parte do sucesso da versão de Stephen Frears está no roteiro de Christopher Hampton, que já tinha comandado antes uma montagem da peça e soube preservar o aspecto epistolar do romance original, valorizando as cartas trocadas pelos personagens como condutoras narrativas em meio a um ambiente dominado por diálogos sussurrantes, gestos sutis e tênues expressões faciais.
A apuração estética de Frears também casa bem com o pano de fundo de uma França pré-revolucionária, ostensiva e hipócrita, mas o seu grande acerto está nos pequenos truques de câmera que usa para descamar cada vez mais as nuances dos ricos personagens de Laclos. A própria abertura dos créditos, com a imagem de mãos femininas abrindo uma carta, já indica uma história que será comandada por uma mulher, enquanto a opção de intercalar narração em off com os acontecimentos descritos nas cartas permite entender a real intenção de cada um por trás das aparências. Logo na cena inicial, quando vemos a Marquesa se admirando no espelho enquanto Valmond é rodeado por empregados que o ajudam a se vestir, Frears deixa claro que se trata de um jogo de vaidades, aparências e máscaras, e que os dois personagens estão se preparando para o início do primeiro round.
Ligações Perigosas trata da hipocrisia elitista e religiosa, da corrupção da moral, da perda da inocência, de ceder à luxúria, do cair de máscaras, mas tudo é comandado com tanta fina ironia e senso de competição que desperta no espectador uma estranha e culpada atração. Apesar de toda a maldade, manipulação e crueldade, é simplesmente impossível não sentir uma mórbida empatia pelo jogo da Marquesa e o Visconde. A massiva repetição de cenas que acompanham a rotina tediosa de passeios em jardins, jantares formais, apresentações de música erudita e códigos de conduta, só reforça o carisma da Marquesa e do Visconde, que faz de tudo para fugir do marasmo e se divertir em manipular as pessoas ao redor. A Marquesa, em especial, uma mulher à frente de seu tempo e presa numa época em que as mulheres tinham pouca voz ativa, extravasa sua frustração ao enxergar todo o cenário como um teatro de fantoches a ser comandado por ela, manipulando cada situação a seu favor e assim provando a superioridade intelectual e emocional do seu sexo, numa simples e eficaz filosofia: “vencer ou morrer”. A cena em que ela explica a Valmond sobre seu passado e o que a levou a se tornar quem é talvez seja o ponto alto do filme, com Frears aproximando gradativamente a câmera em direção ao rosto de Close, como que adentrando na personagem e revelando a verdadeira pessoa por trás da máscara.
Em um filme como Ligações Perigosas, a escalação do elenco é um ponto crucial, e muito do sucesso do filme se dá por conta de Glenn Close e John Malckovich, dois gigantes do cinema americano que desempenham aqui suas melhores performances. Close, principalmente, está em um tour de force excepcional mesmo para os seus padrões, e o enaltecimento da direção de Frears eleva a atriz ao ápice de seu vigor, exprimindo uma maldade tão crua e ao mesmo tempo tão sutil que chega a chocar. E, afinal, era essa a intenção, conseguir chocar séculos depois da mesma forma como o romance de Laclos chocou a sociedade de sua época. Dessa vez não pelas diversas abordagens sobre o sexo e a condição humana dentro de uma sociedade, mas pela identificação que gera quando percebemos sentir uma ligação perigosa com todo aquele mundo de malícias e discretos sorrisos.
Ah, sim, a versão do Milos Forman, com o Colin Firth e a Anette Bening, não fica muito atrás deste aqui não - a diferença é que lá tem a pegada mais irreverente do tcheco. E, claro, a dupla protagonista, apesar de nem de longe fazer feio (é a melhor atuação da Bening que eu tenha visto, na verdade), não chega nem perto desta. Mas é um baita filme.
Obrigado, pessoal 😉
Filmaço!
Escrita pelo Heitor, a crítica costuma ser maravilhosa, e dessa vez não foi diferente.
Apoio os elogios aos desempenhos de Close e Malkovich, assim como o destaque para a ambientação da trama e sua capacidade de permanecer instigante.