Na adolescência, ouvi pela primeira vez uma expressão que me marcou e que voltaria a minha memória durante a sessão de Liberté: 'sexo é poder', pronunciada no filme Assédio Sexual, adaptação por Barry Levinson da novela de Michael Crichton. Se a produção estrelada por Michael Douglas e Demi Moore não era necessariamente um opus, ao menos me fez travar contato com uma visão não-edulcorada sobre relações humanas, prévia ao boom da internet no Brasil. O sexo longe de qualquer ideal de prazer e utilizado como moeda de troca, como porta de entrada pra perpetuação da misoginia e de decadente dominação masculina.
Escancarar os restos mortais da aristocracia francesa a partir de um retrato de decadência política e moral é um lugar confortável para Albert Serra, que vem moldando uma filmografia radiográfica sobre o ocaso de lideranças. Essas mesmas figuras centrais que protagonizaram os jogos de dominação política na França nos últimos 300 anos são o foco central dos projetos do diretor de A Morte de Luís XIV, mas sob o fascinante ponto de vista do fim dos seus tempos, da enxovalhada que suas existências precisam tomar da História.
A busca por uma 'Alemanha-Shangrilá', onde todo o tipo de desdobramento sexual seja permitido e vivenciado, é apenas um dos pontos de debate de um filme que se desenvolve em blocos de acontecimentos. Ora discursivo, ora imagético e se intercalando entre esses grupos de ação, Serra estabelece muito rapidamente um padrão para seu jogo cênico. Aos homens cabe a estrutura permanente do poder que a oralidade lhes outorga; às mulheres, a moral pétrea da servidão universal. De um lado, senhores imbuídos de desejo carnal, enquanto do outro estão seus objetos de satisfação, mas nada além.
Com uma visão obviamente provocante e antiquada sobre as relações entre sexos, que varia entre a subserviência e a humilhação extrema, a produção premiada na última Un Certain Regard (em Cannes) abraça uma ironia moldada em tempo distendido e repetição de estrutura dramática que define a mecanização do prazer, além do olhar oligárquico no qual tantos compartimentam o ato sexual, em uma pirâmide que beneficia somente as figuras que habitam o topo. Com imagens que ultrapassam alguns limites da perversão, Serra molda um mosaico de imagens que mais uma vez remetem às artes plásticas - em luz a cargo de Artur Tort.
Um duo de cenas, no entanto, podem fazer evadir o interesse do público pelo material proposto, e necessitam de um olhar concentrado quanto ao seu significado aparente. Vítimas de uma passagem onde se incluem tortura e degradação sexual com diferentes resultados para o personagem feminino e para o masculino, o filme subverte as questões de gênero apresentadas até então para equilibrar esse espaço de decadência moral. Longas e desconfortáveis, as cenas poderiam ter a função de horizontalizar o olhar sobre os sexos, mas terminam por refletir o caráter imersivo, porém extenuante, do cinema de Serra.
O jovem diretor, que vem do cinema experimental e aos poucos costura uma espécie de antologia fotográfica através de instantâneos perdidos no tempo; o recorte temático, no caso dos últimos longas, é o período de transição e queda de hegemônicas figuras históricas. Sua habilidade advém de lados por vezes contrastantes entre o discurso e a imagem, mas que sua capacidade de equilíbrio criam uma atmosfera acertada para tanto mergulhar no caleidoscópio de fotogramas concebidos que evoquem a um só tempo volúpia e degradação, quanto sorver seu texto provocativo que destrincha a hipocrisia de quem vê seu mundo ruir, e precisa se agarrar a métodos igualmente arcaicos de dominação.
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