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Last Night I Saw You Smiling

(Last Night I Saw You Smiling, 2019)
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Críticas

Cineplayers

Relatando um edifício

6,5

A lógica que opera o filme Last Night I Saw You Smiling (2019), exibido como parte da mostra competitiva de longas-metragens no XII Janela Internacional de Cinema do Recife, não é estranha ao documentário contemporâneo. É o jogo de um “eu” que se coloca em cena sem filmar a si mesmo, como vemos nos filmes Coração de Cachorro (Heart of a Dog, 2015) e Não É um Filme Caseiro (No Home Movie, 2019). É um exercício a princípio particularmente interessante, porque promove uma reflexão sobre a própria autoralidade do filme ao mesmo tempo que nos convida a observar uma outra imagem: um cão animado, no caso de Coração de Cachorro; ou um lugar, no caso de Não É um Filme Caseiro e Last Night I Saw You Smiling.

O lugar de Last Night... é o Edifício Branco, localizado na cidade de Phnom Penh, capital do Camboja. Nós observamos aqui o que podemos chamar de “últimos dias” do Edifício, que está sendo desocupado para demolição depois de ter sido comprado por uma empresa japonesa. Quando vemos o trator arrancar uma de suas paredes, e a poeira sobe como consequência dessa ação bruta, estamos diante do fim de algo que nos foi presentificado em uma hora e vinte minutos de filme.

Narrativamente, Last Night... nos prepara para esse fim. Acompanhamos cada etapa do processo de saída dos moradores: reuniões com os representantes da empresa e órgãos municipais, as visitas que procuram saber em que dia cada morador pretende deixar o seu apartamento, a coleta de itens pessoais para a mudança e as reminiscências dos moradores. O filme em si funciona como uma dessas reminiscências, no que o diretor do documentário, Kavich Neang, nasceu e foi criado naquele edifício.

Em alguns momentos, no entanto, o diretor parece querer se ausentar desse relato, filmar à distância, e o filme luta um pouco com esse conflito de proximidade. A relação dele com as pessoas que entrevista, por exemplo, é sempre “revelada” por quem é entrevistado. Uma mulher mostra uma foto antiga tirada no prédio, apontando uma beleza perdida, ele pergunta quem são as crianças na foto, ela diz que não sabe, mas logo afirma “você quando criança corria por aqui”; diante do seu pai, o diretor pergunta como ele se sente, e depois precisa insistir na pergunta quando seu pai a ignora para recomendar que o filho acenda um incenso para agradecer à casa onde cresceu. Esse é o confronto que o diretor parece não conseguir evitar colocar em cena, um filmar a si mesmo hesitante.

Quando o filme nos coloca dentro do prédio no momento de sua demolição, no entanto, ele parece criar um colapso do seu próprio ponto de vista: quem é esse sujeito que está com a câmera enquanto o edifício desmorona ao redor dele? Não pode mais ser um morador, porque esse edifício não tem mais moradores; não pode ser um observador distante, porque ele está inserido nesse processo material do fim do edifício. Pode apenas ser um ponto de vista novo: o do próprio edifício, que sente a poeira entrar em seus pulmões e recua com dificuldade de respirar.

Esse novo sujeito não corria por entre os corredores do prédio branco, mas correram por entre seus corredores. Produzir essa mudança no ponto de vista é a maior conquista do filme. É uma pena que isso se apresente aqui apenas como uma solução para o momento da demolição, em que o que poderia aparecer como uma dificuldade de representação (como encenar esse fim?) mostra-se bem resolvida (incorporando o prédio, fundindo-se com o edifício ao filmar de dentro). Pelo resto do filme, o realizador parece ainda estar procurando a si mesmo por entre imagens vacilantes.

Se o gesto, que já foi recentemente mais celebrado, de relatar a si mesmo a partir do cinema enfrenta um compreensível desencanto – brilhantemente encenado pelo curta-metragem Cinema Contemporâneo (2019), dirigido por Felipe André Silva e em exibição também no XII Janela –, talvez fosse preciso afrontá-lo em algum momento de Last Night..., ou, antes de recusá-lo, levar em consideração que ele se faz presente. Diante do fim do seu edifício, o diretor parece emudecer antes de ouvir os outros moradores. É quando aqueles que insistem em virar a câmera para ele se ausentam que esse sujeito do olhar finalmente se transforma. Sozinho, ele se torna o edifício; mas o edifício, desocupado, nós não podemos saber o que se torna, pois já não há quem o relate.

Crítica da cobertura do XII Janela Internacional de Cinema do Recife

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