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Arrancada, La

(Arrancada, La, 2019)
5,5
Média
3 votos
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Críticas

Cineplayers

Observando um país em transformação

7,0

Como as grandes decisões em macroescala afetam a vida das pessoas comuns? É em parte o que vemos no longa de Aldemar Matias, brasileiro formado na Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV) de Cuba e que, após ser exibido no Festival de Cinema de Berlim em fevereiro, chega em dezembro ao Festival do Rio. Para representar as mudanças políticas e econômicas aprovadas pelo regime cubano, Matias escolheu uma única família para representar os dramas e alegrias do dia-a-dia no pequeno país da América Central, bem como as decisões políticas influenciam suas vidas.

La Arrancada (idem, 2019) elege a profissional de saúde e mãe de família Marbelis e a filha e atleta Jennifer como dois símbolos de como a velha e a nova Cuba são encaradas: a mãe trabalha para o estado, perto de pôsteres de Fidel Castro e Ernesto "Che" Guevara; a filha, constantemente conectada ao seu celular nas áreas urbanas de Wi-fi livre, decide se segue no atletismo ou não enquanto sonha em sair do país e estudar na Europa.

Curioso que, mesmo numa questão tão polarizada (Cuba, ícone do socialismo latino há décadas e pendendo para medidas liberais pela primeria vez), o documentário está interessado mais, na verdade, em como os personagens julgam o que está acontecendo com eles. Marbelis, que foi personagem em um curta na época de Matias como estudante, tem várias facetas exploradas: não apenas mãe e profissional, mas também mulher (como quando a vemos se cuidar esteticamente enquanto conversa sobre relacionamentos com a filha) e até mesmo em questões de fé (como quando leva a filha na beira do rio rezar para um orixá). Enquanto isso, Jennifer é vista correndo nos campos de atletismo, compartilhando dúvidas em conversas de celular, envolvida nas angústias juvenis enquanto seu país se  transforma.

Certamente que nada se transforma da noite para o dia e, se Cuba está diferente, também estão as pessoas nesse documentário de observação, cada qual com suas angústias particulares que Matias consegue captar quase como se filmasse uma ficção, elencando personagens, editando acontecimentos da sua vida em alternância com diálogos externos e internos e por fim as consequências das escolhas que resolvem pela mudança ou pela tradição. 

Com pouco mais de uma hora de duração, é justamente esse senso dinâmico de narração que equilibra tramas que transformam a realidade captada não numa explicação didática, mas numa jornada emocional a ser acompanhada - pensemos em luminares do gênero como Grey Gardens (idem, 1975), em que uma eventual sugestão de interesses e posições políticas que revelem o interesse de retratar aquela história, bem como uma eventual composição poética, se dão através de como os retratados guiam suas próprias vidas e como a câmera se esforça em ir atrás, captar e interagir através da escolha de posicionamentos e capturas. 

Com isso, La Arrancada se mostra fiel ao título: fazendo referência ao esporte praticado por Jennifer, vemos aqui um filme de impulsos iniciais, de vidas em curso após um detonador externo ou interno. O próprio título internacional, On The Starting Line, mantém fiel essa ideia de o que estamos vendo é apenas o fragmento de algo, o início de algo, a consciência da impossibilidade de um filme "total" e do impacto intelectual e emotivo representado pelo cinema de instantes: ver a família que se ama desfragmentada (o pai está preso e o filho músico está excursionar no Chile) é algo que não precisa de grandes explicações além da captação do silêncio, do ocasional comentário, e de como nós nos tornamos reféns dos olhares captados pela câmera. Nada será como antes, todos parecem saber ali, e a nós é confiada a intimidade fragmentária de ver como podem e como vão lidar com aquilo.

Filmes como esse mostram como não à toa o documentário continua forte enquanto tradição cinematográfica, travando um caminho próprio na indústria, mergulhando onde a ficção experimenta de maneira pontual e saindo de lá com retratos pungentes de histórias que simbolizam temas maiores sem nunca deixar de perder seu impacto individual.

Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio

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